terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Eis

A folha caiu por dias
Parecia um fim anunciado,
mas envergonhado.
Na queda, no entanto,
a folha se viu firme.
Percebeu que da queda, apenas o chão bastava.
A altura era, no fundo, ela mesma,
O hiato maldito da angústia barata:
Não há nada mais forte que o desconhecido.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Jardineiro

Cabe a nota:

Um homem caminhava sozinho num dia chuvoso qualquer. A bota, já furada pelo tempo, deixava pedaços de si pela estrada metaforizando a vida do homem que foi dividida, feito herança, em dois países, cinco estados e quatro corações partidos. O que caminhava com a bota, então, era só a marca de uma vida partida. Mal sabia o homem que os pedaços da bota eram sementes. Em outro dia também chuvoso foi surpreendido com trezentos e cinquenta e oito pés-de-si que brotaram por conta da umidade. Quando não chovia, ele passava religiosamente pelos lugares para regar seus brotos. Achou perigoso deixá-los espalhados, levou todos os trezentos e cinquenta e oito para a casa que dividia com a bagunça. As mudas criaram raízes e conseguiram dizer ao jardineiro-em-falta que as outras partes espalhadas careciam cuidado. Lá foi ele. De porta em porta, na ânsia de florecer em alegria viajou os dois países, cinco estados e quatro corações. Voltou com dois porta-retratos embrulhados em plástico bolha, um corte de cabelo, duas camisetas novas e um impagável sorriso no rosto. Ao chegar em casa, encontrou apenas a bagunça, a colheita foi feita à distância.

Fisiologia do medo

O medo é um vírus
Há pouco descobriram isso
Assim, não há vacina.
Talvez nem tenha dia algum
Ele é um vírus
Ele é algo que cresce e incapacita
Limita
Delimita
Transmite e constrange.

O medo, na verdade, tange o desespero
Que esperto:
Porque ali no abismo entre uma coisa e outra ele tira as flores circulantes nas veias e deixa todas à mostra, na camada mais fina da pele.
Frágeis, coitadas, vão perdendo as pétalas
O cheiro
O amor
E o sangue fica fininho
Sozinho
A espera de um novo plantio.

Sobre amar

Do amor eu sabia apenas a metade
E considerava muito!
Até que me vi imerso
Repleto
Praticamente dono de um universo
E descobri que sabia menos ainda
Sei quase nada
Só sei que ele me basta
E assim sigo
na jornada vasta
leve e sorridente de uma vida acompanhada.



Encontros

O motorista avisou ser o final da jornada, trinta e cinco pessoas, um gato e um cachorro - os quais travaram grandes lutas em seu universo gaiolístico - respiraram aliviados. 
Ao meu lado, estavam uma mãe e sua filhinha catarrenta que não cansou de esfregar a secreção em minha perna durante a viagem, mas quem importa? Por muito tempo fiquei absorto olhando aquela fragilidade potencialmente capaz de mudar o mundo. Realmente uma grande loucura isso de crescer. Vi-me pensando, inclusive, no eu-menino que na década de noventa borboleteou sem saber que um dia chegaria aqui. Enfim, cheguei. Tive que acenar brevemente para a criança, uma vez que a mãe não muito aprovava nossa amizade. Como é insana a vida e seus encontros. Como será o futuro daquela menina? Conseguirá se livrar das garras da repressão e vestir/beijar/comer/abraçar/trabalhar/estudar o que quiser? Não sei, Prefiro acreditar que sim e sendo sim a resposta que me tranquiliza para deixá-la ir, seu nome passou a ser Mariana, cursou história na Universidade (escrevaquiauniversidadedeMariana) conheceu uma menina que fez suas pernas amolecerem desde o primeiro dia que a viu e aceitou que não só de meninos e meninas são feitas as famílias. Não só da diferença é feito o amor, ainda que ele seja um verbo que não transita aos gostos de quem o conjuga. Mariana é vegetariana e apesar de muito tentar não consegue parar de tomar leite e seus derivados. Aí um dia Mariana entenderá que ela precisa comer o que a faz feliz e pela primeira vez (depois da adolescência conturbada, aliás) conseguiu comer um pedaço de pizza sem a culpa da lactose ou da anorexia que a assombrou durante um período. Foram anos difíceis para Mariana, mas ela ainda conseguia sorrir ao ouvir suas músicas preferidas deitada na cama acariciando seu cachorro Zeca, isso sim a fazia bem. E como.
Mariana desceu do ônibus nos braços da mãe e em minha cabeça o presente e o futuro iam de mãos dadas. Preciso ressaltar a bagunça que é a dança destes dois tempos, mas como dançam lindamente a despeito da nossa angústia. O futuro é arredio, não tem muita segurança em seus passos, mas dá suporte para que o presente complete seus movimentos que, por natureza, são firmes. E, assim, a dança segue, Mariana cruza o horizonte e eu permaneço segurando o porvir daquela menina de quem eu só conhecia a textura do catarro e minhas expectativas a respeito dela. O mundo é vasto e cruel e assustador e delicioso e estranho e desgraçadamente difícil: se eu que não a conheço já espero tanto,imagina quem protege até mesmo seu catarro.
Desci do ônibus. Caminhei pela rua e conheci Miguel, Joana, Clara, Augusto, Astolfo, Etelvina e o cachorro Tob em duas esquinas, um destino incerto e um atropelamento. E tal qual Mariana, acompanharam-me em longos quinze dias de UTI nos meus sonhos administrados em via venosa. 

Até que o futuro parou de dançar.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Harmonia

O poema é a clave
do ritmo que transforma,
em parte,
a vida num pedaço de arte.

As notas, portanto,
servem de chave
pra porta que abre, às vezes
o pranto.

Porque é dele,
da vida que corre em lágrima,
que pulsa o ritmo sincopado que tem o dia:
não basta a parte
que o excesso seja o acesso à harmonia
esta, ainda que avessa, desarmônica,
supera a agonia e sugere em afasia
o significado da palavra vazia.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Lacustre - Parte I

Sim, o céu estava negro. Não, ele não encontrou aquilo que procurava. Então, divagou. Ele decidiu parar e deixar com que o vento que vinha do mar desenhasse em seu rosto um mínimo e minúsculo sentido. Ora. Sentimento não vem assim de fora pra dentro, ele emerge. Mas ele, ao contrário, contrariando a proposta, imergia a vida para uma profundeza marítima que ele acumulava nos olhos pela ausência de lágrimas (ou a farta presença contida). E ali, nesse novo mar que se construíra, nadava o outro ele, sozinho também, contudo, não petrificado de ação. Ele gesticulava enquanto flutuava. Os gestos, ocos de significados aparente, dançavam sua maior profundeza: a de existir em gotas dentro da existência frígida e seca que, solitária, tinha problemas em se colocar no mundo. Coexistiam naquele primeiro homem, o do sim e do não, dois homens, ele era partido. Mas o moço que nadava, que flutuava nas profundezas de um mar inventado ainda gesticulava suas verdades incompreensivas: ela era solto, ilimitado e por assim ser não era livre.

Perdeu-se tanto no pensamento, que a ideia de abrigar um outro homem em si foi o motivo que o levou pra casa, certamente estava beirando a insanidade, assim como seu falecido irmão. No entanto, aquele breve momento de companhia inventada construíra nas vontades de Heitor um pouco mais de desejo (que muito lhe faltava). Caminhou a meia hora que o separava de sua pequena casa, cantarolou uma música que pouco conhecia, mas achou que era necessário, precisava expressar a alegria que encontrou ao perceber em si alguém com quem conversar. Como será o nome deste nadador que, aqui, se aproveita da minha resistência ao choro? Tem filhos? Tem um amor? Talvez Heitor o amasse, mas temia amar outro homem, então resolveu dizer que simplesmente muito estimava aquele moço que de sunga azul, estilo nadador, perambulava seu ínterim entre a realidade e o desejo.
Heitor é um jovem novo rico de uma nova cidade, a qual ganhara, da noite pro dia, quatrocentas e trinta e cinco vagas em cargos públicos para uma população de cinco mil habitantes. Ele ocupava uma cadeira por seis longas horas todos os dias, mas a recompensa o agradava: ele conseguia comprar o necessário e poupar um pouco para o quê ele não bem sabia. Escrevia para a coluna mortuária do jornal local, por vezes ninguém morria e ele nada escrevia.
Talvez um dia ele conseguiria sair de sua zona de conforto e rumasse o desconhecido num mar como aquele que ele sustenta dentro de si. Ou. Ou. Ou. Ou ele simplesmente deixe esse dinheiro guardado e rendendo juros numa caderneta de poupança que ele sustenta desde quando não sabia bem o que ela significava. Caminhando naquela noite no sentido de sua casa lembrou da mãe e do pai. Certamente eles não gostariam de vê-lo na atual situação, ao mesmo tempo em que sim, vai saber. Quantos mares os pais dele tinham dentro de si? Essa habilidade pode muito bem ser hereditária, não sei se de parte de mãe ou de pai. 
A meia hora que passou se parecia muito com a camisa vermelha que tanto gostava de usar, não passava. Por que ele gostava tanto de usar justamente esta camisa? Heitor. O vermelho, certamente era o vermelho o motivo desta predileção. Porque ao chegar a casa que chamava de sua, após a camisa vermelha que o separou do mar, foi no tapete vermelho que ficava na entrada que ele limpou hermeticamente seu sapato (mesmo sem saber ao certo o que hermeticamente significava). No fundo, nem o foi.
Cortou cenouras. Gostava muito delas. Aquele laranja vivo contrastava com o pouco ânimo que uma anemia lhe causava (apesar de também inventada). Com as cenouras raladas, Heitor construiu um prato para si, mas não conseguiu comer. O alaranjado era mais forte porque, agora, estava colocado num prato tão alvo quanto os dias de Heitor. E veja: agora ele era o prato. Era isso o que realmente queria ser, talvez, um receptáculo daquilo que vive, daquilo que pulsa desejo e vontade de viver. Lógico, não apenas a cenoura, mas o vivo que ela trazia naquelas láceras sem sangue algum era como se a dor não existisse àqueles que sabem viver. Lembrou mais uma vez do homem que vivia em seu mar... Por conta dele, quem sabe unicamente por causa da contemplação primeira, resolveu comer aquele prato. Não, a comida que estava no prato, porque o prato era ele e autofagia em absoluto o nutriria. 
Alimentado, então, deitou-se na cama (não sem antes lavar o prato). Contemplando o teto também branco fechou os olhos e teve em mente o moço que morava em seu mar. Apelidou-o de Hélio, tão fugaz e nobre a ponto de evadir seu existir e optar por simplesmente viver flutuando. Certamente estou ficando insano como meu irmão. Era isso o que ele pensava, mas não era isso o que Hélio o dizia. Hélio sorria. Hélio tentou até falar, mas ainda não tinha linguagem compreensível a Heitor. Dizendo para si mesmo, portanto, Hélio afirmou o quanto era agradecido a Heitor e, em agradecimento, apareceu no sonho dele por quinze longos dias, ininterruptamente com sua sunga, livre até mesmo de si.