terça-feira, 4 de janeiro de 2011

E aqueles passos eram repertório de uma felicidade contida,
não mais que duas palavras e meia dúzia de xícaras de conhaque

Os olhos não conseguiam mais olhar para onde deveriam, a bebida já fizera o efeito costumeiro: tontura, insegurança de si e moleza nas pernas. Ele amava esse sentimento, era o momento onde ele mais se sentia outra pessoa, onde ele menos se preocupava com os seus problemas. A carreira infeliz e a vida também ausente de felicidade o faziam um bêbado confesso. Sempre que conseguia, ia para o bar sentir a vida de gole em gole rasgar sua garganta e cortar sua vida a um terço do que poderia chegar. Uma longevidade enclausurada e exilada num futuro tão obscuro quanto o presente infeliz.
Não conseguia mais caminhar por si, então, caminhou pelo bêbado que tomava conta do seu corpo. Fazia questão de beber no bar próximo a casa da sua ex-esposa, queria que ela visse a besteira que fez ao pedir o divórcio e que era culpa dela, exclusivamente dela. Mas sem filhos, depois de quinze anos o casal perde a cor, o sabor, e para não perder a rima pobre, o amor. O homem que habitava a carapaça etílica que fazia vezes de ventríloquo desalmado, sabia que a culpa também era dele. O casamento não é unilateral e de responsabilidade única da mulher. Ele também fizera por merecer: copos espalhados, toalha molhada, tampa levantada, sem contar nos jogos de domingo que contava sempre com a presença de moças sem pudores visíveis. Ele queria mais era o fim do mundo, do seu mundo, da sua dor.

E se jogou na frente do primeiro caminhão que passou na rua de sua esposa, onde calmamente ela sonhava com uma viagem que eles nunca fizeram para o lugar que eles nunca sonharam visitar, ouvindo a música só deles que eles nunca tiveram.

Não, ele não fez isso. E mesmo que fizesse, não teria diferença alguma na vida de ninguém. Sem família e com um teto desarrumado pela ausência de empregada, nada o impediria de ser enterrado como indigente. “Não, isso não!” Disse a voz do pingo de consciência que ainda lhe restava dentro do copo, ainda não alcoólico, de sua mente que oscilava entre o estado sóbrio e o podre de bêbado.
O sol no horizonte já dava o sinal de terça-feira com cara de domingo, ele pensou que poderia largar o emprego, mas não faz muito sentido tendo em vista que promessa de bêbado nunca vinga. Sem mais opções, resolveu vomitar o que lhe incomodava:

- E se eu disser que ainda te amo? Se eu disser pra quem quiser ouvir que teus peitos ainda são lindos e que tuas rugas não são maiores que minhas entradas? E se eu te disser que fui o pior marido do mundo e que não mereço teu perdão, tu me perdoarias?

Na cama do prédio em frente a esta cena com um quê de dramalhão mexicano a linda coroa de cabelos já vermelhos pela solteirice, apenas dormia sóbria de si sonhando com um marido que a amasse de verdade, afinal esse tinha sido o sonho de uma vida inteira que havia sido deixada de lado e trocado por um ilusão de casamento, uma projeção de marido e uma vida de farsa. Ela sonhava com o orgasmo que nunca teve.

- Beba a tua dor, coma toda a tua angústia e tempere com esse teu jeito insuportável que se anima ao maltratar os outros. Tudo tem um fim. E eu queria, de todo meu coração, que todos esses anos perdidos não tivesse recebido nem ao menos um começo. Vá para o raio que o parta!

Era o que ela diria.