quarta-feira, 9 de março de 2011

Desabafo epitafiado

Já escreveram sobre o último conto, a última crônica e até mesmo o último poema. Não sou ninguém perto dos grandes nomes que se aventuraram a dar uma derradeira escrita de maneira determinista quanto à forma. Por isso, de modo redundante como me é de costume, faço o último epitáfio. Sim, leitor, uma ênfase poética a algo que já é fim por si só, mas com um quê literário dado o tardar da hora: madrugadas inspiram.
Sempre pensei na morte como algo a não se pensar muito, tive medo dela muitas vezes. Quando me via pensando em morrer, tratava de trocar de pensamento no ato, não que eu seja adepto aquela história de atração universal, mas não duvido. A morte é estranha, assume tantas formas que, no fim das contas, não sabemos nem do que temer: se é de uma pedra que cai, de um carro que vem a nossa direção ou uma doença que vem de dentro. Acho que a morte é parente próxima do medo e da preguiça. Talvez um trio de primos...
Mas se um dia ela vier me buscar – se busca ou traz, talvez simplesmente permaneça, não sei – prefiro que esteja bem vestido, não sei qual traje usar pra ocasião, mas penso que preferirei minha camisa xadrez azul, cai bem pra tal acontecimento. Quero estar com um olhar sóbrio para o horizonte como quem espera uma notícia boa, afinal, ninguém sabe se é bom ou ruim morrer. Vai que é bom e ninguém teve notícia. E se for um formigamento gostoso dos pés a cabeça que termina num sentimento de leveza tão grande que, quando percebemos, estamos nas nuvens brincando de ser criança? Por isso quero estar descalço, acho infame pisar nas nuvens com o sapato que caminhou por este chão sem luxo algum.
Pode ser também que seja uma mudança de plano, patamar ou transparência. E se todos os mortos apenas ficarem transparentes e inaudíveis? Ficam imóveis apenas para a burocracia funerária e depois dão um suspiro aliviado de quem vive mais uma vez num novo mundo: o Éden fúnebre. Coitados do que são cremados... Deve ter alguma ala para aquelas pessoas que viraram pó, um monta e desmonta, uma reconstituição. Devo repensar a ideia de ser cremado, nota mental.
Digamos que ela tenha vindo, a morte. Quero estar lendo um bom livro. Tomara que ela não me pegue lendo almanaques baratos ou encartes não ortodoxos. Prefiro fazer a pose de bom moço até a morte. Darei a mão com cuidado, espero que seja gelada. Seria uma decepção saber que a morte é quente, não combina. Aí começaria o dilema, como avisar aos amigos? Uns longe, outros perto, mas longe. Enfim, notícia ruim (e espero que seja) corre rápido. Enquanto sou maquiado e ganho o brilho no rosto que me faltou na vida, meus amigos recontam as mesmas piadas, um clima de reencontro para a despedida. Os familiares sofrem com a perda, mas já repartem os bens, no meu caso, alguns livros, meus óculos e papéis de importância para mim, mas de valor inexistente para os outros.
Não quero ter velório, já aviso. Acho triste demais, pelo menos na morte quero ser alegrinho. Prefiro que aqueles que estavam lá por falta de opção contem para os que não foram por falta de oportunidade que o meu velório foi uma coisa bacana e diferente. Ficou-se debatendo o meu (não)sucesso, a minha (im)prosperidade e a minha (anti)simpatia. Não quero ser egoísta, claro. Peço também que comentem sobre casos da atualidade e que remetam os fatos a minha pessoa: o que eu acharia disso tudo? Não é de bom tom falar de dólar, euro ou reais, a conta da funerária já fará esse papel. Um papo sobre a vida, literatura e o destino que a humanidade está tomando cai bem.
Não sei se quero comida. Quero que todos fiquem acordados para um debate legal. Está valendo também cada um falar sobre a sua própria vida. Prefiro que não falem muito do passado, só se forem memórias dignas de uma lágrima, uma só! E que seja esse o único motivo para lágrimas. Se a morte me veio em tal data é porque eu não mais serviria como humano vivo, tudo faz sentido no fim das contas. Não quero que procurem explicações, a morte não é explicada, é compreendida e quem não compreender que pegue o número do meu terapeuta. Capela de velório não é divã.
E antes de me cremar/enterrar/mumificar (ainda não decidi), que não seja esquecido de colocar nas minhas mãos um exemplar do meu último livro publicado (na falta de publicações vale qualquer obra de Clarice Lispector ou Machado de Assis) junto a uma foto de meus pais e meu irmão com a assinatura das pessoas que eu amei na vida no verso (todas as pessoas que se julgam amadas podem assinar, no pós morte decido quais apagar). Pretendo ter boas lembranças mesmo que não mais tiver, de fato, uma memória para armazenar.
E pra quem acha tudo isso um misto de pessimismo com humor negro de péssima qualidade, fica minha saudação, sou adepto àquela história de que se trata inimigos como amigos. Porque mesmo que a morte leve minha lembrança física, sei que vou ficar de um jeito ou de outro em algum lugar. Talvez eu passe a morar num porta-retrato na casa de alguém, ou na página de um diário com uma gota de lágrima que borrou a tinta. Pode ser que eu me fragmente em alguns pedaços e viva para alguns alguéns por aí. Nada mais poderei fazer além de ser a lembrança de alguém que sorriu quando teve vontade e chorou quando quis, porque se a morte é imprevisível ou inexplicável, a vida é a potência infinita de tudo isso.
Feitas as projeções, só tenho um pedido: que eu não morra antes de mim mesmo, deve ser triste viver numa vida latente, potencialmente incapaz de viver. No mais, não me importo com a cor do caixão ou a quantidade de flores, contanto que não tenha velas e que eu esteja de xadrez azul e devidamente descalço preparado para brincar mais uma vez.