segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A rosa

Peguei uma rosa
Pequena, mas rosa.
Miúda que só ela
Atrevida como um cravo, perguntou:
de quantos poemas se faz o teu sofrer?
Medida ingrata essa.
Preferi dançar um tango a responder.
Mas não danço!
Eu canso.
E cansado, olhando a rosa
cravei de pétala em pétala uma palavra
porque ora espinho, ora pétala
a palavra descasca.
E mostra. Não!
Rasga.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A saudade não dói, corrói.

Havia uma doença que ninguém conhecia, só aquela pequena menina. Apesar de nova, tinha ciência de sua enfermidade. Que lucidez! Seus sintomas eram quietos, mas fortes. Sempre que sentia saudade, um pedacinho do seu coração evaporava, virava um gás miudinho que se diluía no sangue e saía pelos poros, cheirando a ausência. Com quinze anos, sofrendo caladinha, seu coração tinha o tamanho de um pêssego, depois de perder seu pai num acidente de trabalho. Todos os dias, ela chorava uma lágrima de saudade, o que lhe garantia um pedacinho de coração a menos. Inteligente que era, passou a guardar em potes de maionese o ar que saía dos seus poros na esperança de, um dia, converter tudo em coração mais uma vez. Aos vinte, quando o primeiro namorado disse adeus, ela tinha uma ervilha pulsátil e uma parede de maionese cardíaca. Era tanto sangue, tanta ausência. O vazio que ali se fazia, foi enchendo a agora moça. Um dia, se olhando no espelho, percebeu que havia um buraco no seu peito, entre uma costela ou outra, viu que era hora. Hora de ver o que fazer com tanto gás de saudade, o vazio estava corroendo a sua existência. Mirabolou uma máquina, veja você, que liquefazia a saudade. Tinha em mãos, então, o xarope pra recompor seu coração. Sete vidros de xarope cardioformador ou o repositor de miocárdio, pesquisou nome bonito pra botar. Com o remédio pronto, ela ficou pensando por três dias o que fazer. A cabecinha de alfinete que batia em seu peito dizia pra deixar, pra aceitar que de saudade se fez aquela vida. No espelho, mais uma vez, via nitidamente seu músculo minúsculo que se mostrava no buraco que havia no peito. Constatou, a saudosa moça, que ela era aquela ausência e se sentia saudade é porque amava e o amor, para ela, era soberano. Por fim, acreditou que tanto vazio era o fardo que ela carregava por amar demais e, ainda no espelho, ao lembrar de seu antigo cabelo, viu seu grão de areia explodir em saudade. Os sete vidros de xarope foram distribuídos nos asilos de esquecidos que tomavam um golinho por dia pra sentir o calor de amor que aquela moça ainda retribuída ao mundo, mesmo vazia e finda.

A virgem


Era magra pelo descaso, fora filha desgarrada, esquecida, uma filha que não nasceu para os pais.

Acabou gostando, por algumas semanas, do crescimento mal contido de sua barriga até o ponto que o jeans 42 não serviu mais. O peso da barriga não era mais compensado pelos chutes carinhosos da criança, o amor não era nutrido como deveria ser, mostrava-se desnutrida de afeto, uma raquítica sentimental. E daquele parto normal tão dolorido que só aqueles que ouviram os gritos podem explicar saiu a filha da mãe.
Logo na maternidade a mulher que ainda sentia no próprio corpo as conseqüências do parasitismo gestacional percebeu o ódio pela filha. O sentimentalismo materno havia durado apenas enquanto não se podia ver o rosto. E a súbita vontade de não a ter mais desconstruiu todos os elos feitos ao longo dos oito meses e meio. Magrinha desde que se fez, mostrava-se de mãos levantadas para o alto apelando, mesmo sem saber para quê, por um abraço. A mãe que deveria sair sorridente cheia de leite e amor pela criança que carregaria no colo, saiu sozinha chutando o que via por estar com o peito pesado e o corpo, sua futura fonte de sustento, destruído.
Desde pequena, então, a menina sem nome fora motivo de pena. “Coitadinha, tão magrinha!”, “Pobre menina, não dura uma semana.”. Durou uma vida. Tornou-se Maria das Dores. E pela relatividade do termo vida e a transitoriedade da sua duração, estima-se que uma vida seja muito tempo, uma eternidade para os que esperam a morte, pois a menina, mesmo sem ter noção do que seria o fim, já sentia saudades da época em que ainda não existia. E baseada numa eternidade que acabava todos os dias a menina cresceria cuidada por alguém. A eternidade dura até o ponto da decepção, a partir daí ela se torna tão efêmera quando o piscar de olhos, rarefeita feito fumaça e esvai pelas lembranças que antes unidas, formavam a imagem do passado, presente e futuro personificados. É como cair num poço sem fundo que, de repente, oferece um impacto com o chão. A moça não mais tinha a eternidade ao seu alcance, não era mais dela a escolha de seus atos, ela estava cega de olhos abertos para o mundo.
A incubadora já era pequena demais para o bebê e, fora dela, a criança não tinha mais para onde ir. Das Dores lutava pelo dó de alguém com seus choros noturnos e involuntariamente espantava a condolência das enfermeiras que tentavam dormir no plantão. Certo dia, então, a moça da limpeza cansada de ver reclamações a respeito de uma criança tão pequena resolveu levá-la para casa, onde comem seis, podem comer sete, pensou dentro de suas vestes amareladas pela sujeira de quem limpa. Apesar de bom coração, a moça da limpeza não tinha um coração de mãe. Já havia tentado ser mãe quatro vezes, mas só conseguia ser a mulher que levava comida para casa, que arrumava a cama e que continuava seu árduo ofício de limpar também na sua própria residência. Os filhos, então, tinham casa, comida e roupa lavada, mas eram órfãos de mãe viva, não seria diferente com das Dores que já era experiente na orfandade.
Das Dores, apesar de leve, tornou-se um peso na vida de quem a carregava no colo. Descuidadamente eram trocadas suas fraldas uma vez ao dia, alimentava-se sempre no limiar da necessidade e chorava. Eram lágrimas que não tinham fim, um pranto eterno de quem não vê horizontes. Desde pequena, ela adquirira um ar opaco no seu olhar, não tinha como as outras crianças o brilho de uma vida que começa, era como se a menina já tivesse nascido velha, com a carga de umas cinco vidas mal vividas.
A casa que não fora o hospital não lhe trazia ares de lar. Criada para servir aos irmãos, adotou a vida de ser adotada. Calada a moça tentava se lembrar de um dia que fora feliz, por falta de recordações poupava lágrimas para uma tristeza maior, ou, no caso de ainda restar esperança, uma felicidade incontida. Quem não sabe sorrir acaba procurando alegria nas minúcias do mundo. A batedeira que fazia um barulho engraçado ou o rodo que não limpava direito por ser torto fazia com que a menina, por vezes, mostrasse os dentes para o chão lustrado pela cera que persistia nas suas unhas mal cuidadas.
Em sua bagagem, acumulava olhos tortos e esquivos, que num tom forjado denunciavam um preconceito camuflado, por falta de onde guardar. Era no chão que procurava abrigo, não tinha raiz. Queria tê-las para poder ser fixa, desprezada e enfim, ter paz. Seus olhos não eram sincronizados, sua vida era torta como o rodo que empunha para limpar a casa.
Cansou-se da limpeza, da pena e de todo o resto. Saiu ao mundo como quem procura uma razão para viver e de rua em rua tornou-se mulher. A moça que sabia apenas limpar e limpar sujava a paisagem urbana com a sua vadiagem, como diriam os engravatados que passavam por ela com olhares de nojo. E mesmo que o corpo masculino pedisse para jogá-la na parede e fazê-la gritar, o asco de sua sujeira que cor nenhuma explica impedia os engomados de desejar e a libido virava ânsia.
Ainda na rua, fez-se alguém. Agradada pelo papo do dono do albergue entregou-se na cama ao homem errado como fizera sua mãe, talvez essa tenha sido a herança materna. Alimentada pela esperança de ser como os outros: casar, ter filhos e poder amar e sorrir. Ela disse ao homem que queria unir-se a ele como mandam as leis. Homem nenhum gosta de leis. O albergue fechou, abriu em outra cidade e ela ficou sem ninguém.
Algo se mexia dentro da filha de outrora que numa metamorfose multifatorial transformou-se em mãe. Não era raiva, ela não sabia o que era. A barriga crescida chutava, pulava e, sem saber o que fazer, a mãe do acaso apenas fazia aberturas laterais na sua única camiseta, com estampa do Mickey. Dar espaço para a barriga crescer não seria o suficiente. Em algum momento aquela barriga viraria uma vida... Mais uma vida sem saber o que é sorrir? Depois de um dia bebendo vodka barata, terminada a garrafa ela se mostrou feliz. E sorrindo, gargalhando na verdade, tomou a decisão de sua vida: por fim a sua eterna desilusão de viver. Não tinha o direito de dar a alguém o destino que lhe fora imposto e com agulhas de tricô encontradas no lixo de alguém fez carinho em seu feto ali, mesmo na rua.
Escorrendo pelas suas pernas a cor do amor a fez feliz. O vermelho que via nas vitrinas de dia das mães marcava sua pele tatuada, deitou-se para esperar o fim, enfim. De mãos para cima, agora sabendo para quem pedir o abraço, como na maternidade, entregou-se a um novo mundo. Em seus braços ensangüentados, trapos sujos imitavam um bebê. Ascendeu, então, para onde quer que seja, a virgem de felicidade com o salvador da tristeza.
Não caiu ao mundo feito anjo, flor ou árvore, caíra feito gente. Não dessa gente que vive do tempo, marca os passos e adora solidão - mesmo quando está ao redor de outros. Veio como gente que cai na contramão atrapalhando o tráfego, também não como diz Buarque, pois caso fosse MPB, samba ou chorinho, cairia no gosto popular. Não fora melódica nem possuidora de versos agradáveis, tinha palavras secas e inteligíveis e, à prima vista, balbuciava um dialeto contrário ao usual, proporcional ao seu tornado de sentimentos, pois às vezes a linguagem é o reflexo da condição. Quem sabe o problema tenha sido esse, ela nunca entendeu a língua daqueles que disseram pra ela o que é viver, afinal, como diz Sartre, somos aquilo que os outros fazem de nós.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O sorriso

Midas tinha um irmão. Um irmão que, como ele, também tinha um dom. Só que ao contrário de Midas, seu irmão não transformava tudo o que tocava em ouro e, por isso, foi esquecido. O toque de Silas não agradava muito, era áspero, frio, rude, transformava qualquer superfície num emaranhado de acúleos, como um casulo estéril de dor em potencial. Ninguém ousava tocar na produção tenebrosa e involuntária de Silas, o que o obrigava a usar luvas espessas, impedindo-lhe o prazer do toque. Cansado, o coitado, isolou-se num casa longe do reino de seu irmão e, ainda que sucessor do poder, preferiu viver no anonimato de seu dom às avessas. Em sua casa, sozinho, Silas parou de usar as luvas e aos poucos o conforto que lhe foi garantido no alto da montanha naquela construção de madeira foi ficando espinhoso, mas dele. Mesmo que ele se machucasse ao dormir em sua cama, ele gostava de lá. Mesmo que sua gengiva estivesse machucada pela aspereza da escova já transformada pelo seu poder ingrato, ele gostava de lá. Construiu viveres diferentes daqueles que ele tinha ao lado do irmão, deu vida a sua infelicidade fazendo com que ela se transformasse em compreensão e, porque não, felicidade. Silas passou a gostar dos seus acúleos porque eles eram parte dele. Morreu. 
Ninguém nunca encontrou o corpo de Silas, talvez nem encontrem. Surpreendente é saber que um dia entraram em sua casa isolada facilmente confundida com um roseiral sem rosas. Uma camponesa solitária que procurava um meio de sobreviver achou interessantíssima aquela construção arbórea tão incomum. Intrigada com a planta nova que havia encontrado, com suas mãos calejadas, foi abrindo cada emaranhado espinhoso sem sentir dor. E, ali, como em uma ostra, mas diferente, apresentavam-se pequenos diamantes azulados donos de um brilho que parecia sorrir. Feliz, a camponesa se mudou para perto de sua mina. Ficou rica com aquela nova espécie de diamante e com alguns deles construiu um sorriso na parede de seu quarto. Aquele brilho que sorria a fazia lembrar de alguém que ela nunca conhecera. Apaixonada, fez um memorial àquele que nunca vira, mas certa da sua existência, com as seguintes palavras: Ainda que dolorido, mesmo que distante. Ainda que solitário, mesmo que triste. O brilho azulado cravou em meu coração a força pra viver.
Silas certamente sorriria, talvez pela primeira vez.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Queda

Cavei, só pra te ver cair.
De grito, abraço e fúria construí tua ausência.
Mas ela ainda está aqui.
Ela é danada.
É bem amada.
Talvez a queda, em si,
Seja a moeda
Que troca, que muda
Que te fez de outro
Que te pintou de ouro
Que contrasta com meu eu de cobre
que ainda cobre o meu sentir
que me fazia em ti,
não para ti.
Então, não caí.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O colo

Ora, por que justo agora
decidi gostar assim,
desse jeito tão alheio a mim?
Porque só agora
eu vi que não se gosta,
se aposta.

Não sou bom em sorte.
Afinal, em que?