domingo, 18 de janeiro de 2015

Lacustre - Parte I

Sim, o céu estava negro. Não, ele não encontrou aquilo que procurava. Então, divagou. Ele decidiu parar e deixar com que o vento que vinha do mar desenhasse em seu rosto um mínimo e minúsculo sentido. Ora. Sentimento não vem assim de fora pra dentro, ele emerge. Mas ele, ao contrário, contrariando a proposta, imergia a vida para uma profundeza marítima que ele acumulava nos olhos pela ausência de lágrimas (ou a farta presença contida). E ali, nesse novo mar que se construíra, nadava o outro ele, sozinho também, contudo, não petrificado de ação. Ele gesticulava enquanto flutuava. Os gestos, ocos de significados aparente, dançavam sua maior profundeza: a de existir em gotas dentro da existência frígida e seca que, solitária, tinha problemas em se colocar no mundo. Coexistiam naquele primeiro homem, o do sim e do não, dois homens, ele era partido. Mas o moço que nadava, que flutuava nas profundezas de um mar inventado ainda gesticulava suas verdades incompreensivas: ela era solto, ilimitado e por assim ser não era livre.

Perdeu-se tanto no pensamento, que a ideia de abrigar um outro homem em si foi o motivo que o levou pra casa, certamente estava beirando a insanidade, assim como seu falecido irmão. No entanto, aquele breve momento de companhia inventada construíra nas vontades de Heitor um pouco mais de desejo (que muito lhe faltava). Caminhou a meia hora que o separava de sua pequena casa, cantarolou uma música que pouco conhecia, mas achou que era necessário, precisava expressar a alegria que encontrou ao perceber em si alguém com quem conversar. Como será o nome deste nadador que, aqui, se aproveita da minha resistência ao choro? Tem filhos? Tem um amor? Talvez Heitor o amasse, mas temia amar outro homem, então resolveu dizer que simplesmente muito estimava aquele moço que de sunga azul, estilo nadador, perambulava seu ínterim entre a realidade e o desejo.
Heitor é um jovem novo rico de uma nova cidade, a qual ganhara, da noite pro dia, quatrocentas e trinta e cinco vagas em cargos públicos para uma população de cinco mil habitantes. Ele ocupava uma cadeira por seis longas horas todos os dias, mas a recompensa o agradava: ele conseguia comprar o necessário e poupar um pouco para o quê ele não bem sabia. Escrevia para a coluna mortuária do jornal local, por vezes ninguém morria e ele nada escrevia.
Talvez um dia ele conseguiria sair de sua zona de conforto e rumasse o desconhecido num mar como aquele que ele sustenta dentro de si. Ou. Ou. Ou. Ou ele simplesmente deixe esse dinheiro guardado e rendendo juros numa caderneta de poupança que ele sustenta desde quando não sabia bem o que ela significava. Caminhando naquela noite no sentido de sua casa lembrou da mãe e do pai. Certamente eles não gostariam de vê-lo na atual situação, ao mesmo tempo em que sim, vai saber. Quantos mares os pais dele tinham dentro de si? Essa habilidade pode muito bem ser hereditária, não sei se de parte de mãe ou de pai. 
A meia hora que passou se parecia muito com a camisa vermelha que tanto gostava de usar, não passava. Por que ele gostava tanto de usar justamente esta camisa? Heitor. O vermelho, certamente era o vermelho o motivo desta predileção. Porque ao chegar a casa que chamava de sua, após a camisa vermelha que o separou do mar, foi no tapete vermelho que ficava na entrada que ele limpou hermeticamente seu sapato (mesmo sem saber ao certo o que hermeticamente significava). No fundo, nem o foi.
Cortou cenouras. Gostava muito delas. Aquele laranja vivo contrastava com o pouco ânimo que uma anemia lhe causava (apesar de também inventada). Com as cenouras raladas, Heitor construiu um prato para si, mas não conseguiu comer. O alaranjado era mais forte porque, agora, estava colocado num prato tão alvo quanto os dias de Heitor. E veja: agora ele era o prato. Era isso o que realmente queria ser, talvez, um receptáculo daquilo que vive, daquilo que pulsa desejo e vontade de viver. Lógico, não apenas a cenoura, mas o vivo que ela trazia naquelas láceras sem sangue algum era como se a dor não existisse àqueles que sabem viver. Lembrou mais uma vez do homem que vivia em seu mar... Por conta dele, quem sabe unicamente por causa da contemplação primeira, resolveu comer aquele prato. Não, a comida que estava no prato, porque o prato era ele e autofagia em absoluto o nutriria. 
Alimentado, então, deitou-se na cama (não sem antes lavar o prato). Contemplando o teto também branco fechou os olhos e teve em mente o moço que morava em seu mar. Apelidou-o de Hélio, tão fugaz e nobre a ponto de evadir seu existir e optar por simplesmente viver flutuando. Certamente estou ficando insano como meu irmão. Era isso o que ele pensava, mas não era isso o que Hélio o dizia. Hélio sorria. Hélio tentou até falar, mas ainda não tinha linguagem compreensível a Heitor. Dizendo para si mesmo, portanto, Hélio afirmou o quanto era agradecido a Heitor e, em agradecimento, apareceu no sonho dele por quinze longos dias, ininterruptamente com sua sunga, livre até mesmo de si.

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