sexta-feira, 3 de julho de 2009

A hora do rei

Apoiou-se com a mão direita na mesa, com a outra segurava o cigarro que tragava quase que se exibindo. “Sei que fumar em local fechado é proibido, mas ainda vou deixar de fumar”, falou isso com certa ironia. Ainda antes de começar sua fala, o motivo da convocação, puxou com o pé um cesto de lixo escondido e cuspiu dentro dele, em seguida, apagou o cigarro na água do vaso que Ivete, a faxineira, tinha gentilmente colocado como decoração. “Pessoas assim importantes quando fazem reuniões, gostam de um arranjinho na mesa” disse ela quando arrumou o auditório. O homem tão importante tinha costeletas enormes que emendavam com o bigode amarelado pela nicotina. Isso não é uma campanha contra o cigarro, no entanto, aquela amarelidão que combinava com as pontas dos dedos era da nicotina, sem sombra de dúvidas. Começou então a fala tão esperada:
- Senhores! (pausa) – mancando, mostrando um possível bico de papagaio, hérnia de disco, ou qualquer outro problema na coluna que o tirava do prumo, da angulação normal de qualquer homem normal. Deu três passos bem lentamente, posicionou-se em frente de um quadro negro (Cálculos em silêncio).- Acredito senhores - prosseguiu o rengo, o qual também era gordo - que hoje sairemos daqui com uma nova mentalidade com relação a nós mesmos e nossa luta diária.(pausa)
– Tomou água que a Ivete tinha deixado e falou: Que calor!
- Mesmo sabendo de nossas dificuldades e limites – as quais eram evidenciadas pelas sérias debilitações físicas do falante – devemos aliar a rotina à doutrina do desapego, esquecer que somos diariamente julgados pelo o que aparentamos ser.
Mesmo que o assunto o empolgasse, o velho penteava o bigode amarelado sabendo que a sociedade e seus problemas não era o motivo principal da reunião. A pauta abrangia muito mais que um discurso socialista, comunista, anarquista, capitalista, ou qualquer outro manifesto que envolvesse o entorno e a interação do meio com o mesmo. Aquele homem, roçado pelo tempo, gasto pelos dias e maltratado pelas horas estava prestes a revelar aos seus sócios a descoberta de sua vida. Ivete, a empregada, admirava muito aquele homem, lamentava que ele gastasse tanto com cigarros. No fundo, nutria um sentimento platônico, mesmo sendo casada e mãe de quatro filhos. Procurava sempre suprir as necessidades do velho visivelmente adoentado, mas quando ele falava, Ivete ia às nuvens e pensava como alguém poderia ter engolido a Barsa e digerido-a com enzimas de conhecimento.
- Caríssimos, ao longo de minha vida, estudei muito e li sobre muita coisa. Nada do que meus míopes olhos fitaram é comparável a que tenho para revelar – um acesso de tosse acometeu o pobre homem torto, mas mesmo entre tosses, com voz cansada, continuava o discurso – não espero de vocês algo menos que o espanto, o que me refiro, supera os limites físicos.
A essas alturas, os ouvintes já se mostravam temerosos. O homem também de bigode que ficava na primeira fila não parava de alisar os fios demonstrando nervosismo, a mulher ao lado dele alternava o cruzar de pernas e feito coreografia tornava externa a sua aflição.
- O homem depende exclusivamente do seu autocontrole – a revelação estava próxima. O coração do velho palpitava feito coelho em disparada, o que tanto esperou de fato estava acontecendo, proliferaria a sua idéia.- Não somos ninguém perante a natureza!
O corpo não respondia aos reflexos, os neurônios não estavam mais em harmonia. A orquestra de sua vida desentoava perante aquela assembléia que atônita, pensava assistir a um comício nunca antes imaginado. Contorcendo-se e balbuciando, gemendo e quase chorando veio ao chão.
- Bravo! É de homens assim que o nosso país precisa, meu voto é seu, sempre soube da sua aptidão para a política e que hora ou outra iria aflorar. Bravo! – exclamou em êxtase o homem do bigode.Em coro os outros ouvintes seguiam o exemplo do primeiro manifestante, gritavam a vitória do defunto.
Saíram planejando campanhas, propagandas e correções na feiúra do candidato através de programas de computador para dar um tom angelical a imagem certamente abominável dos “santinhos”.Ivete, como sempre, emocionou-se com tudo, achou tudo muito lindo mesmo não tendo entendido parte das palavras, algumas, inclusive, anotara para pesquisar no dicionário. Pela primeira vez, foi felicitar o homem.
- Doutor, foi tudo muito lindo, parecia um rei... Doutor?
O que respondeu foi o óbito. O pobre homem que via o mundo a trinta graus para a esquerda não fez a revelação, não chegou ao objetivo, mas morreu como rei.


Texto escrito com meu pai, José Genario Machado (http://www.jmachadolg.blogspot.com)