sexta-feira, 14 de junho de 2013

Poesia

Prometi ao além
que, por um dia,
ainda que pela metade,
viveria sem poesia.
Que maldade.
Tentei, juro que me esforcei
Mas quem disse que eu conseguia?
Desisti dessa ideia louca.
O além que me desculpe:
a vida ficou pouca.
A ânsia do meu dia,
a angústia que vira azia,
tudo eu transformo em poesia.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Monocromático

Deixou, ali onde descansavam os óculos, um pouco do mundo que lhe era estranho e foi dormir. Era um hábito, todos os dias, depois de muito ver coisas de dor invisível, ela deixava os óculos num canto de sua cômoda, como se eles precisassem de um tempo só deles para digerir tudo o que haviam visto. Sem proteção. Sem mediação de um não, tudo era entregue àquelas lentes como uma realidade passível de vivência. Mas não! Era dolorido paraqueles olhos enxergar tanta coisa, assim, eles se afundaram no rosto antes simétrico da moça. Nem mais os óculos, quando no rosto e ainda que grossos, escondiam a insatisfação em forma de olheira, mais a direita. Torta, declinada, a moça dormia enquanto a madeira que compunha a cômoda sustentava um apanhado de coisas avessas, que, de tão avessas, não prismavam a luz amarelada do poste marginal à estrada que gritava a pressa alheia.

domingo, 9 de junho de 2013

Espiral

Vértebra ante vértebra
sou a coluna escoliósica
dessa mania de retidão,
proponho uma nova lógica:
de não em não, muda-se a angulação
e a critério do momento,
deixo que o sentido venha da emoção
e, pra quem não lembra,
antes esse era um não.

sábado, 8 de junho de 2013

Explicação

Dizem que o português é burro,
mas quem colocaria,
num só dicionário,
samba e saudade
sem intentar poesia?

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Vácuo

Um dia o mar resolveu dar ré. De súbito, numa manhã avermelhada de outono, o mar foi voltando-se ao centro-mundo num retroativo oceânico, como um retorno à maternidade desconhecida, talvez, por solidão. Porque de praia em praia, na continentalidade, os olhos voltavam-se apenas para o silício transeunte que, ao mesmo tempo em que ligava, separava os seres cansados de si. Abismados com o abismo horizontal criado nas costas e encostas, o povo foi adentrando no ex-mar que seu formava. Descuidados, construíram casas, pensando: mais espaço. Todos que coragem tinham construíram um casebre às  pressas para garantir um lugar no chão-mar. Os produtores bovinos alegravam-se ao saber que os peixes não mais serviriam de alimento e, veja só, davam espaço para a produção de carne. As terras marais (como ficaram conhecidas) passaram a ser terra-de-ninguém quando extrapolaram a continentalidade. Sem regras, a carnificina se fez e quanto mais ela se mostrava, mais o mar recuava para um buraco, agora visível, no umbigo do mundo entre o Pacífico e o Índico. Os noticiários já noticiavam, até porque é isso que fazem. Sem a crítica, sem um quê de criatividade, o que se via na tevê era o caminhar do mar na direção de um buraco temível e temido que oscilava entre o negro e o carmim. Os montes de carcaças dos seres aquáticos ficavam invisíveis com a possibilidade de mais espaço para a ganância. Estradas. Carcaça. Abutres. Odor. Mudou-se o ciclo de água, o clima, mas o homem é bicho camaleônico. O mundo passou a inventar-se por cima da não existência de oceanos. Agora só um, o chamado Remanescente, diminuía a cada dia, como um pulsar convalescente, um grito de socorro. Nos derradeiros dias, o buraco negro-carmim deu lugar a um coração. Aquela víscera pulsátil exposta pouco chamava a atenção dos homens que afoitos construíam  o lugar de dono por cima das fossas, agora, não oceânicas. Numa última diástole, o coração jorrou em sangue o que lhe havia sido entregue em mar. Em casa, um homem solitário, na antiga América agora desvalorizada, cortava lenha para se preparar para o inverno. Ouviu com sua audição limitada o uníssono de um grito de desespero, como um pedido de perdão.