domingo, 12 de dezembro de 2010

E o mar era tão grande que eu, momentaneamente, dei-me alguns outros olhos para poder enxergar tudo o que eu não absorvi há anos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Um dia

Fui direto. Não pensei duas vezes ao colocar aquela porção a mais de maionese de legumes, isso é que é refeição. Consegue unir o vilão com o mocinho, é incrível! A bondade histórica dos legumes, suas cores e vitaminas do bem junto à virulência da gordura saturada (mas sem colesterol) da maionese que, sem dúvida, tem mais de 40 kcal. Foi um poema épico ver personagens tão antagônicos duelarem num mar de feijão e lentilha com pequenas ilhas de arroz. No fim, quem venceu foi um terceiro integrante obscuro e desconhecido que usa F.O.M.E como codinome, que não tem nada a ver com a história, mas amou tudo isso. Parou de se revirar e roncar, amando toda aquela rivalidade que se unia em uma massa homogênea... No fim, tudo vira a mesma coisa. Tudo. Eu, que não sou virulento nem vitaminado, os legumes e a maionese. 

Juro que tentei não olhar, mas é difícil, ela provoca. A gente pensa estar livre destas coisas do mundo quando se vê preso a algo, mas ela consegue me tirar do sério. Será que é assim com todos ou é essa minha dispersão crônica por coisas avulsas? Preciso de terapia... A questão é que ela não é normal, não pode ser, o que Freud diria? Não diria nada, eu acho, nem ele tem essa força. Ela me seduz. Quando vi já estava na sua frente, prestes a pagar o combinado. Pensei: 'posso ter isso em casa, por que ainda procuro na rua?'. Não sei o que minha mãe pensaria disso.
Não resisti. Sou culpado eu sei, mas é o vício, quem não tem problemas com auto-controle? Juntei as moedas e introduzi. Ela gritou. O café veio e eu matei toda essa minha ânsia, mas concluí: aquela era a máquina de café mais atraente que já vira, acredite, tinha até chá de limão.

Qual é a força disso tudo?

Em tempos como esse, o mais produtivo é ir escrevendo o que vem à cabeça, qualquer palavra, qualquer uma, mesmo que não tenha sentido. Algo de bom tem que sair, algo de aproveitável deve estar escondido nesses confins de mim. Já balancei a cabeça umas tantas vezes para ver se coloco no lugar o que está desordenado, mas acho que vai demorar para reorganizar, ou não. Se tem uma coisa que aprendi com o passar do tempo, é que nada é mais atemporal que o próprio tempo. Ele, por si só, se perde na sua cronologia e deixa assim ao vento a ordem das coisas. Uma desordem orgnizada, muito parecida com meu quarto por sinal. 

terça-feira, 16 de novembro de 2010


Eu queria ter um poço em casa, desses que poucos têm. A diferença é que eu sei poupar, iria tomar um gole por dia, uma gota, que seja. Não sou de esbanjar, nunca fui. É que às vezes me pego sem ter para onde correr, sobre o quê falar. Queria uma gotinha só. Hoje, por exemplo, escrevo sobre essa minha falta de criatividade crônica que me assola há um bom tempo, um ócio imaginativo que perdura mais do que deveria.
Vejo que essas pausas são necessárias, é como terra. Não entendo nada de plantação ou agricultura, até meus doze anos não sabia a diferença entre agricultura e pecuária, coisas que só as aulas de ciências nos trazem. Mas mesmo sem entender, acho que a lógica é a mesma, não adianta esperar imediatismo de uma coisa que depende do tempo, apesar de ser atemporal. Envolve também toda uma questão de subjetivação e identidade literária, mas esse não é meu caso, adoto o sincretismo.  Não que as beterrabas tenham crises existenciais ou os nabos se percam por divagações, no fundo sempre achei os repolhos mas inteligentes, aquelas camadas, não sei... Na verdade, acho que me arrependi da comparação.
E sem ter o que falar acabei falando dos repolhos e das camadas dele, que desânimo! E eu que pensei um dia fazer das palavras a minha vida, encontro-me na seca de uma vertente havia criados expectativas, mas da vida nada se espera além dela mesma que se finda por si só.  Quero guardar tudo isso e esperar um fim, alguém tem pipoca?

domingo, 31 de outubro de 2010

(In)solúvel (des)igualdade

Seu João faz do pão de ontem o alimento de hoje e de amanhã. Joana ama diferente, não gosta do amor comum. Cláudio não tem a cor que queria ter e ama Joana mesmo sabendo que ela não o quer, não pela sua cor, mas pelo seu gênero. Rodrigo não gosta de ninguém e se prende em casa dentro do seu mundo. O que impede a felicidade nesses moldes? Tão habituados à padronização, acabamos por soltar olhares esquivos a uma quadrilha tão avessa a nossa vida de consumo imediato.
Regados por boas doses de imediatismo, acabamos esquecendo que a vida é bem mais que um ou dois minutos, nem tudo precisa ser fast-food. O que intriga é essa necessidade de amparo no igual, esse escapismo no mimetismo social que nem sempre é a fuga mais saudável. A segregação é tanta que para fazer parte de uma tribo ou ser aceito dentro do clã tão enovelado quanto lã, as pessoas chegam ao seu extremo. Burlam os direitos próprios e alheios e tiram o quê humano que ainda restava nas relações.
Tudo o que é diferente, portanto, perde o caráter real, vive num universo paralelo que não cabe nem em notas de roda pé das psicografias, até espíritos ganham mais espaço. Os seres alienados ao mundo capitalista/comunistas/imediatista e tantos outros istas, são invisíveis, fantasmas de um esquema montado para esquecê-los. Quem padronizou o padrão? O sentimento é traiçoeiro, mas a escolha pela humanização dele é um bônus. A gaveta que guarda os preconceitos é tão pesada, que poucos conseguem fechá-la.
E antes de jogar pedras nas Genis da vida, deve ser percebido que elas também têm seus caprichos, todos têm. Cláudio, João, Joana, Rodrigo ou qualquer outro são humanos por serem únicos. Segregar o diferente é jogar ao Zepelim a felicidade da raça humana, a pluralidade do pensamento, da expressão e, acima de tudo, da vida. Viver aos moldes do singular limita a conjugação do viver.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

E quem morre de feijão?

A sua vontade não era diferente de qualquer outra: tinha fome. Alheio a todo conhecimento que o encontraria num futuro promissor, o menino se entregava a suas vontades como a mãe se entrega ao filho recém-nascido, ou ao menos se entregava na época dele. Sem muitos limites, mas grandes preceitos para a construção de um caráter sólido, o menino, perto de completar seu décimo primeiro aniversário, fora passar as férias escolares na casa da irmã que já havia casado e morava na cidade. A princípio fora meio difícil deixar a casa no sítio, gostava de poder comer a fruta da sua origem, de fazer coisas escondidas e ter onde esconder, afinal, toda criança é assim.
Na transição do bucólico para a paisagem nem tão campestre, a mente infantil fazia voltas dentro de seus limites imaginativos: “Será que a mãe vai descobrir que eu matei a galinha com a funda?”, “Acho que posso vender mais pés de alface...” Sobreposto a isso, ele fazia planos de como seriam os dias longe de casa sem o olhar atento a afetivo da mãe. Tinha em sua mente uma liberdade implícita: irmã não manda, apenas aconselha, e conselho segue-se quando bem entender. É incrível como a cabeça de uma criança consegue pensar em tantas coisas ao mesmo tempo vai da negação à afirmação antes mesmo que se pense em uma resposta concreta.
No ônibus, onde viajava sozinho pela primeira vez, tinha vergonha de olhar nos olhos das outras pessoas. Pensava ser uma invasão de privacidade, fora isso, abusava da observação da vida alheia e, de súbito, percebeu que o menino da sua frente mascava chiclete. Essa sim era uma paixão incontida. Não eram os cabelos da Mariquinha, nem o perfume da Rosinha, sua paixão era o gosto mastigado do chiclete. Tuti-fruti, morango, hortelã, menta, o que fosse, o gosto não importava muito. Perdeu a vergonha de encarar os olhos alheios e fitava a expressão superior do menino aparentemente abastado que mascava como se fosse a última goma do mundo. Efêmero, o gosto do chiclete acabou e o riquinho, tentando esconder, grudou a goma mascada na parte inferior do banco ao passo que o ônibus chegava ao seu destino. Todos saíram menos o menino guloso. Ainda salivando pela vontade e temeroso pela ação de furto que era embutida naquele ato, descolou o chiclete do banco. Sim, mascou o que já fora mascado, aprenderia só mais tarde que poucas babas são comestíveis.
Acariciando a alma com cada mastigada no corpo rígido e sem gosto que trazia na boca ele foi caminhando em direção a sua irmã que o esperava na rodoviária. A irmã comentou que ele estava mais magro, precisava comer. Ele, mentalmente, lamentou como ela não parava de engordar, mas não teve liberdade de dizer, há muito ela havia saído de casa e a intimidade de irmãos vai se perdendo com a distância e a falta de contato. Ao chegar a casa onde passaria os próximos dias traçou um paralelo com o lugar onde morava: “apesar de pobres, éramos mais limpos”. Não que a irmã tivesse um padrão de vida elevado, mas possuía mais condições do que sua família no sítio, a casa de lá, apesar de ter o chão de barro batido, tinha um aspecto de limpeza permanente. A casa das férias, da irmã, tinha uma cor de sujeira, um tom que não mereceria entrar para a aquarela.
Os sobrinhos que tinham idade para serem primos, eram legais, uma simpatia convencionalizada pelo parentesco, mas choravam muito e sempre estavam com cara de criança gripada. A primeira noite foi um impacto: a cama não era boa, fazia muito calor e o cunhado (com cara de tio) roncava. Passada em claro a noite que tanto planejara durante os dias que precederam a viagem, acordou para um café simples, porém gostoso, que a irmã preparara especialmente para ele.
Teve a impressão que as coisas iriam melhorar. E de fato iam, o dia ia se mostrando ótimo, tirando a queda com a sobrinha e sua boneca-gente na lama. Ele saíra limpo, mas a boneca não, a sobrinha que guardava em sua feição sempre um choro de precaução, falava gritando que preferia a morte ao ver o cabelo da Stephanie (a boneca) assim. Apesar de pequeno, o menino já tinha noção sobre o que era a morte e achou engraçado como aquela menina tão pequena poderia citar uma palavra tão pesada com a leveza de um sim.
A morte. Isso o intrigava muito, nunca havia visto, mas já tinha previsto: a galinha que levara a pedrada com a funda sem dúvidas estava morta e aquele peso o impediu de comer frango no almoço, mas não o feijão. Aquele feijão. Feita de uma maneira desconhecida para a mente infantil daquele garotinho, aquela comida guardava dentro do seu aroma e também do gosto um sentimento de tudo. Tudo no sentido de tudo mesmo, ele não conseguia explicar o que lhe passava pela cabeça ao comer aquele feijão. Queria sempre mais. “Esse menino é furado!” Falava a irmã arrependendo-se por ter evidenciado a magreza.
Mas o almoço não fora suficiente, não para ele, um guloso. Muitos diziam que era ‘magro de ruim’, mas a irmã não sabia dessa fama. À passos lentos, depois de um café que servia como jantar foi em direção à cozinha que ficava separada do resto da casa. Sozinho ele encontrou a panela de feijão. Comeu. Muito.
No dia seguinte, na hora do almoço, o menino pediu categoricamente o feijão de ontem. A irmã respondeu dizendo que o feijão de ontem havia acabado no almoço de ontem e ainda pôs a culpa na fome ilimitada dele. “E o feijão que eu comi ontem? Ela está querendo esconder de mim!” Uma atitude justificável devido à quantidade de filhos, mas na cabeça daquela criança era um insulto. Sem dar tempo para o menino expor sua revolta a irmã completou dizendo que o feijão que tinha em casa era velho e que comer aquilo pode até matar. Pode até matar.
A fome acabou e o dia escureceu. O menino que sempre levava um sorriso bonito no rosto demonstrava um semblante de preocupação. Queria poder ver a mãe mais uma vez. Ele se fiava na possibilidade da morte, não na certeza. Entretanto, ele já tinha um conhecimento prévio de assuntos fúnebres e sabia que quando era a hora, era a hora. Seria possível uma criança morrer por causa de feijão? Como ficaria sua certidão de óbito? “Morto por feijoada”. Com uma certidão dessas saberia que mesmo morto sentiria vergonha, não queria dar esse desgosto aos pais.
Ao anoitecer ele já havia aceitado mais a morte, a vida não é bela para todos. Passou por todas as fases do enfretamento, rebelou-se e quebrou o balanço das crianças catarrentas, chorou quantas lágrimas fossem necessárias para afogar o medo da morte. Tentou o apoio da irmã, mas quando criou coragem para falar com a irmã ela estava cantando, tinha uma voz bonita, mas não escolhera bem a letra. “Deixa a luz do céu entrar... Abre bem as portas do teu coração e deixa a luz do céu entrar...” Fora o sinal que faltava.
Meio devoto que era, rezou naquela noite. Repetiu a meia dúzia de orações que sabia de cor, inclusive as antífonas da missa, tudo vale a pena para salvar uma alma, pensou. Deitou-se. Arranjou uma boa posição para esperar a morte, cruzou as mãos no peito entrelaçando um rosário nos polegares. Quem via aquilo ria, mas ele, mesmo de olhos fechados, soltava lágrimas pelas pálpebras apertadas. Naquela noite o cheiro ruim da roupa de cama não o incomodava mais, achava que estava perdendo os sentidos.

- Será que dói morrer? Morte?...

Ninguém respondia, a morte é solitária e a vida injusta. Uma criança, tão jovem, tão pequena e delicada esperando a morte? Por um feijão? Morrer de feijoada não seria seu destino. Passou a noite em claro mais uma vez, mas desta vez de vigília. Queria encarar a morte e pedir mais um tempo de vida, deixaria de ser guloso...
A sobrinha loira e a boneca enlameada o acordaram cada uma com sua frase:

- Me dá um abraço?

- Ele está vivo!

Vivo! Com vida, sem morte, sem feijoada e com fome. Beijou tanto a sobrinha e até mesmo a boneca que precisou lavar o rosto para tirar a lama. Não havia morrido. De tanto medo conseguira dormir só quando o sol já mostrava seus raios e, por isso, não acordara antes do meio dia, a irmã, preocupada, pediu para que a filha ficasse olhando o tio até ele acordar. Como aquela casa ficara linda de um dia para o outro, como o mundo ganhara cores! A vida passou a ter mais graça depois daquele episódio. Talvez o feijão não estivesse ainda envenenado o suficiente para matar, ou quem sabe não matasse. Na cabeça dele nenhuma justificação era mais necessária: estava vivo.
As férias passaram de uma forma muito rápida e ele aproveitou ao máximo por renascer das cinzas do fogão à lenha. Já em casa, segredou à mãe do fato acontecido. Ela riu com seu sorriso de mãe que só ela sabia ter e o abraçou dizendo: quem bom que você voltou vivo! E foi naquele abraço que ele viu que não havia chiclete mastigado, feijão estragado ou qualquer outra comida gostosa tão boa quanto viver ao lado de quem se ama.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Pólen do seu próprio ventre

Hoje me dispo das caras que assumi ao longo dos anos e passo a escrever com a voz que me foi dada ao nascer. Passiva ou ativa é a voz que nasce dentro de mim e me faz deixar de lado, mesmo que por uns poucos devaneios, meu lado Fernando Pessoa de ser. É que o motivo que me faz unir as palavras é tão íntimo da razão humana que seria desumano perder-se na ficção.
Vejo meus problemas de forma exagerada, faço deles coisas grandes quando na verdade são pequenas. Não é intuito aqui comparar problemas ou menosprezar meus sofreres, mas há de se saber que existe diferença entre as dores. O que mais se ouve são os choros de amor de uma vida inteira, na sua forma carnal que agem feito cicuta nos corações desamparados. A magnificência do amor faz dele a chaga dos sensíveis. Mas é nesse mesmo amar onde as pessoas se perdem. Ao sofrer por amor se esquece de todo o resto que, por mais discreto que seja, pede um mínino de atenção, uma lágrima que seja, pede amor.
Ao ligar a televisão, num dia como qualquer outro, vejo um caso comum, mas com pessoas incomuns. Uma atriz de renome perdeu seu filho em um acidente de trânsito. Há ainda os desalmados sofredores de amor ou sofredores de inveja que dizem que o caso só ganhou relevância devida, pois aconteceu com alguém famoso. Tristes os que pensam assim. O olhar sóbrio da mãe, molhado pelas lágrimas fixas de uma semana, mas sóbrio, dizia que precisava de ajuda e mesmo assim dava um sorriso forçado, procurando dizer a verdade sem sucesso: eu ainda vou voltar a sorrir, eu ainda vou voltar a sorrir. O mantra que a mãe repetia ao saber que o filho não estava mais entre ela, e que era ele, muitas vezes o motivo dos sorrisos era como o alicerce de uma nova vida.
As chagas criadas no coração dos pais desse rapaz não são como as cicatrizes de amor, e não é querer menosprezá-las. As chagas que foram criadas coisa alguma há de explicar. E só quem sente pode dizer o que é perder o fruto do próprio ventre. Mas não somos árvores. As árvores vêem os frutos inutilizados caírem aos seus pés e apodrecerem num ritual heterofágico da vida orgânica. Sem a possibilidade da fertilidade ao fruto caído, a árvore mãe, involuntariamente, libera hormônio mortal ao pólen do seu próprio ventre. De que vale poder defender o fruto se o mundo não dá, deveras, tal liberdade. As amarras de outrora parecem ter ganhado força com a liberdade, o paradoxo da existência coletiva.
O pai chora um choro sem fim tocando seu saxofone e a mãe tenta passar felicidade e gratidão. Nunca mais serão os mesmos. Nunca mais. É como decepar uma parte do corpo vivo, é perder a vida ao longo dela. Parte fica e outra vai para não se sabe onde. Chico Buarque diz em uma de suas músicas que a saudade dói tanto quando visitar o quarto de um filho que já morreu, porque esse fato, supera a saudade, beira a transferência: por que não eu?
E ainda existem aqueles que põem a culpa na mídia ou em qualquer coisa que o valha: e se fosse meu filho, iam descobrir a corrupção? E se fosse teu filho, não estarias a perguntar isso, estarias tão longe de ti mesmo que fama nenhuma te faria voltar ao chão. O que é a vida se não um eterno sofrer? A questão é pontual e tange o realismo. Sofrer, por sorte, difere-se de ser um sofredor, felizes daqueles que ainda acreditam no sorrir.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O que é isso tudo se não uma confusão que acaba se entendendo por autofagia?

E eu fiquei esperando o tempo passar até que não percebesse mais aquilo que me separava da individualidade de cada segundo. Era como se agora o tempo fosse uma única massa homogênea dentro de um pensamento irregular sobre plenitude. Não mais queria explicar os avessos da minha existência, procurei apenas saborear aqueles minutos sem o tic ou o tac. Adormeci.
Ainda na ânsia de conseguir explicar, acordei sobressaltado. Fiz da caneta minha bússola. Não sei se perto das palavras encontramos algumas respostas, mas a visibilidade que eu tinha daquele momento era tão opaca que me desfiz da incerteza e me pus a transferir para o papel aquilo que me vinha em mente. Na vil tentativa de conseguir gostar de algo, li com calma o que havia escrito. Amassei e joguei fora. Onde adormece a capacidade da auto-apreciação?
Há alguns dias não sentia fome de verdade. Comia por convenção, uma fome cronológica. E era o tempo que me dizia tudo: coma, vista-se, tome banho, chore, coma, ria, chore, chore. O tempo passava a eu sentado via a janela que se mostrava tão áspera quando meu rosto não barbeado. Era aquela realidade que eu queria transferir para o papel? Era aquele mundo com o qual eu tinha contato diariamente que eu queria que saísse de mim? Minhas divagações sobre o que era a janela duraram poucos cinco minutos e já passei a pensar sobre o que o mundo poderia me oferecer, por que não o contrário?
E da rua via só o horizonte. Não que os outros fatores que a compõem não sejam relevantes, mas acabo filtrando minha visão para aquilo que me faz bem e, naquele momento, era o horizonte que eu queria ver. Queria o horizonte por ser um destino, um fim e ao mesmo tempo um começo, outra época, outra janela. Peguei a borracha pra que, com uma lambidinha na ponta, tentasse apagar a caneta. Sem sucesso me perguntei por que ainda guardava uma borracha se há muito não usava mais lápis. Ainda mirando o horizonte, percebi que sou cego de palavras. Nenhum vocábulo que seja parte da minha pequenez em conhecimento conseguiria desenhar o que se vê pela janela em cada segundo. Quis desenhar, mas não nasci assim. Então, sem medo escrevi na folha que ainda trazia marcas do finado texto que o antecedera já carimbada pela força de minha grafia torta: reclamar é o ato falho da vida adulta, por vezes o tempo, o horizonte, a barba, o fim, mas quase sempre se pede uma realidade que não existe, nem no desenho daquele que queria desenhar, que sabia apenas amontoar palavras.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Da arte de rua ou da rua como arte

A rua é linda, a arte mais ainda. Entretanto, a ideia dadaísta de arte pela arte apenas permeia a teoria. Fazer exclusivamente arte, em um mundo capitalista significa fazer dela seu trabalho. Trabalho. Arte. Para alguns a gradação que precede esta explanação não estabelece um elo e faz do ponto final que separa as duas palavras um abismo impossibilitando a relação. Será? Ao passo que o conceito ‘trabalho’ é maleável e ‘arte’ volátil até onde é possível impedir relações? Ou melhor, será que as relações sempre existiram e não nos damos conta? De certa forma, ambos auxiliam na construção de relações sociais, são semelhantes apesar de distintos. Algumas pessoas, inclusive, associam arte à falta de trabalho ou à ausência de vontade de trabalhar, preguiça. Tem-se a subjetivação da identidade trabalhadora.

Sem querer fazer uma crítica bruta ao capitalismo, às vezes fica a impressão de que o mundo perde suas cores mesmo tendo ciência da gravidade disso. Quanto mais rápidos ficam os passos das pessoas apressadas no meio da rua, maiores são as preocupações e menores as percepções. O mundo dos artistas de rua, por vezes, parece ser paralelo ao usual e, se por um minuto da correria do dia-a-dia alguém para com o intuito de admirar, chora a sua incapacidade de rumar sua própria vida. E mesmo que em dias agitados de Copa do mundo onde o verde briga com o amarelo para ver quem aparece mais nas vitrinas das lojas, poucos param para ouvir as palavras de Leminski ou Drummond proferidas por bocas de outrem. Preferem dar aquela olhadela que se dá ao desprezo e seguir seu rumo, mesmo que mascarado como palhaço alguém grite a falta de essência nos dias cinza da cidade.

E mesmo que um desses palhaços tristes que andam pela rua com uma flor de plástico no bolso lacrimejada por resina diga que o dinheiro não importa para ele, como viver sem comprar/vender/gastar? Estes verbos foram conjugados graças ao desenvolvimento desenfreado do capitalismo, fazer arte em troca de dinheiro é querer trocar valores de origens diferentes. Os artistas de rua não procuram dar valor a um sorriso, estabelecer um preço para o sentimento bom de estar feliz, eles procuram reconhecimento por transformar a arte de fazer os outros felizes um trabalho digno e nobre. É nobre ser um curinga dentro de um baralho de iguais, sublimando as angústias do quotidiano em algo que de fato agrade aos olhos.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Se eu pudesse

Plantaria uma moeda

Em várias casas,

De todos os lugares.

Ia fazer mais sucesso que Papai Noel

Ia secar muitas lágrimas

Ia findar muitos choros

Ia calar a fome

Ia cegar muita gente.

Bendita moeda!

Se eu pudesse

Correria pra bem longe

Onde ninguém mais me pedisse uma moeda

Onde ninguém mais precisasse dela

Porque se eu pudesse

Se eu pudesse mesmo

Acreditaria em tudo que penso

Jogaria meus pudores no olhar horrorizado de alguém

E deixaria de pagar o aluguel do mundo

Naquele dia ela acordara feliz. Na boca, o novo batom cor carmim, no coração, mais esperança que o normal. Alimentara-se bem com um belo bolo de laranja do mercado vizinho, saiu sem pressa, à passos curtos para o ponto de ônibus. Lá, percebeu que as pessoas sentiam de longe o seu perfume, era isso que ela queria: ser notada.
O moço de camiseta branca que estava ao seu lado, pela primeira vez, depois de anos pegando o mesmo ônibus, no mesmo ponto, resolveu dar uma olhada mais masculina na moça. Estava realizando seu desejo, isso a fazia bem. Nunca havia imaginado que poderia ser quista por algum homem, que de alguma forma, fosse o motivo daquelas viradas de cabeça disfarçadas e sem vergonha para ver o todo. Esse sentimento de satisfação estava sendo provado pela primeira vez, mesmo que nervosa, com borboletas no estômago, ela sorria. A gengiva ficava a mostra, tinha um tom profundo de vermelho, demonstrava saúde, apenas no sentido figurado.
Na bolsa não levava muita coisa: maquiagens, para manter a arte impecável que fizera no rosto para esconder as marcas do tempo, absorventes – estava nos seus dias e isso dava a ela um tom ainda mais feminino -, a carteira com pouco dinheiro e um pacote de bolacha, no caso de ter fome. Antes, andava pelas ruas querendo ser um desses itens fracos que compunham o interior da bolsa, queria poder ser carregada pela boa ou má vontade de outrem, não tinha vontade de ser móvel.
Não por preguiça, não por medo ou insegurança, antes, a moça não tinha vontade para nada por nunca ter notícia do que era isso, por não ter tido um padrão a seguir e mesmo que alguns sejam excludentes, são extremamente necessários para a formação de um caráter sólido. A moça era feita de pedaços, cacos espalhados. Nem ao dormir era ela mesma por inteiro, era sempre uma metade.
Mas como havia acordado diferente? Como pudera, de súbito, usar os presentes de aniversário que ganhara da empresa onde trabalhava (um estojo de maquiagem e uma loção para banho) pela primeira vez e encarar o mundo sem muitas horas de espelho? Como encontrou a vida numa noite de sono?
O ônibus havia chegado. O moço deu a vez para ela, a moça, radiante, quase caiu num nó de pernas provindo do amolecer da felicidade. Sem perder a classe ou demonstrar o desalinho subiu reboladamente, num compasso sinuoso de quadril. Sentou-se nos primeiros bancos próximos ao motorista e apesar de ter lido no aviso que era impedido o diálogo com o dirigente, ela deu um sorridente bom dia, coisa que nunca imaginara fazer.
Embora o dia estivesse nas suas primeiras horas, ela trazia no olhar uma vivacidade de fim de tarde, fim de expediente, início de vida. O moço do ponto de ônibus ainda olhava para a moça com desejo, aquilo fazia dela a pessoa mais feliz do mundo. Pensou em sentar ao lado dele, mas não teria o mesmo prazer.
Depois de uma curta viagem, seu ponto se aproximava. Ela puxou a cordinha tendo a certeza que seus dedos ficaram amostra para quem quisesse até para quem não quisesse ver, evidenciando suas unhas pintadas de rebu para a mulher ao lado. Inveja, foi isso que a outra sentiu. Disfarçadamente a mulher invejosa do banco ao lado olhou para suas unhas mal cuidadas e percebeu que a vida a fizera feia.
As mulheres, no fundo do fundo, se arrumam para as próprias mulheres. Por mais que o olhar do moço no ponto de ônibus tivesse lhe levado aos céus, aquele olhar de inveja da moça que sentara próxima dela dera-lhe um orgasmo sentimental. De longe, antes de o ônibus partir, mandou um beijo para o moço junto a uma piscadela sensual e o motorista, de forma cordial desejou-a um “volte sempre”, coisa que nunca fizera antes.
Não estava inteiramente acostumada a ser o centro das atenções, mas a isso se habitua tão rápido como uma criança que veste roupa nova. Olhou a rua, pela primeira vez, com olhos que queriam.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

(Micro)Conto da Solidão

A rua se mostrava sóbria. O mundo parecia ser o mesmo de sempre, apesar da chuva repentina em épocas de seca. O silêncio da noite chegava aos ouvidos de quem quisesse e fazia doer o ouvido dos solitários, como aquele que, sem vontade de ser ou estar, descansava seu corpo suado na calçada onde as pessoas colocavam, no máximo, apenas os pés.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Puerifagia

Um velho barbado
de terno surrado
teme perder a esperança de ainda ter fé.
a passos curtos
com olhos de quem ainda é criança,
senta num banco e pede um café.

A moça questiona sobre o leite
Leite? Café!
Ele cala o brado de quem exclama
Aceita a sugestão espontânea
Xícara, pires e açúcar
Olha pra espuma com olhos de quem havia chorado

Ainda com medo
levanta-se sem pagar
Volta, pega duas moedas e limpa a consciência.
Tentava não se mostrar esgotado
E já que a decência envelheceu
O velho sentou na esquina
Pediu um cigarro
e fumou a tristeza
de um mundo cruzado.

Em tom sussurrado
o velho tentou gritar.
E ainda sentado
com olhos fechados
perdeu a vez.

Na ida da vida
a volta fechou-lhe a porta.
Cansado e parado
na janela do mundo
calçou os sapatos
e preferiu correr
mesmo que isolado
e com o vento na barba
perdeu-se no mundo, calado.

Ainda com esperança
de terno surrado,
barbado,
o velho voltou a ser criança com a chuva que caía.
De corpo molhado,
mente usada,
cuspiu o café que havia tomado
e bebeu as lágrimas do céu que morria.


quinta-feira, 15 de abril de 2010

Uma historinha de colegial

Ao secar aquela lágrima ela prometia que seria a última a atravessar sua atual triste feição. Sem lenço, com o dorso da mão, ela levava embora toda a tristeza que a fizera sofrer pelo tempo necessário de perder amigos, desejos e sonhos. Ele não estava mais ali e ela mais uma vez sozinha lamentava a sua inutilidade e falta de habilidade de escrever a sua própria história. Sentada no banco que outrora fora cenário de lindos momentos a dois, ela assistia solitária, de camarote, sua grande tragédia.
Tudo parecia mais frio. Aquele vento era mais forte, o sol já não era mais quente, nem ao menos as flores tinham a mesma beleza. Tudo mudara. Agora, a menina que aprendera a caminhar compartilhando passos e dividindo caminhos, teria que passar a trilhar seu destino. O destino é feito por atitudes presentes que trazem conseqüências futuras. Muito se acredita na possibilidade da vida pré-delimitada pelas estrelas ou qualquer coisa que o valha, mas a moça, cansada de ler horóscopos falsos, mapas astrais mentirosos, esqueceu-se do destino e de toda a sua definição, jogou tudo pro alto e jurou não mais chorar.
Em vinte e quatro se repartia o dia, pela metade, o ano se fazia completo em meses e na terça parte disso, o tempo se via em estações, mas a moça, que outrora se fazia em duas, não sabia como poderia ser uma. A indivisibilidade daquela tarde a impedia de olhar as horas no relógio, quem denunciava o passar do tempo era a sombra da árvore que caminhava pela praça como se tivesse pernas, como se pudesse ser gente. “Pudera eu ter raiz”, pensou.
De longe, a passos largados e desajeitados, vinha o motivo de seu choro. Não mais que qualquer outro rapaz, não menos que sua vida personificada em um corpo alheio, permitindo-se do exagero. Ele não era forte, alto e possuidor de olhos claros, mas ele era ele. Aquele que durante o colegial a ignorava, a fazia de tola, mas que no ensino médio resolveu dar uma chance à menina inteligente. Para ela, o mundo fazia sentido com ele, entretanto, o sentimento não era recíproco.
Os olhos já denunciavam, ela havia passado a noite chorando e ele, mesmo não sendo bom em perceber os detalhes femininos tinha uma pequena noção do que tinha causado. “Não foi culpa minha”. Isso não passava de uma desculpa banal, igual a tantas outras que se vê por aí, ela queria mais, queria uma que ele a convencesse de que dividi-lo com alguém, mesmo que por uma noite, uma fração de dia, valeria à pena. Nada mudou a sua opinião.
O muro que separava a menina da verbalização caiu, apedrejando o pudor, a censura interna e as vergonhas ela teceu frases, construiu uma armadura de argumentação com os olhos fixos para uma pedra que repousava calmamente ao lado do tênis do rapaz. Os olhos não. Se ela olhasse para os olhos, tudo estaria acabado, e mais uma vez, a moça boba do ensino médio voltaria a ser a moça boba do ensino médio e a traição seria camuflada pela sua falsa sensação de liberdade, deu as costas e resolveu seguir a vida por si, com suas próprias pernas sem nem ao menos esperar resposta.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Do que dizem teus olhos

Não basta contentar-se com a vida. Desde quando delimita-se o tempo, os segundos fragmentam o ser. A cada fração de hora, parte fica e parte vai e de dentro, de onde sai o suspiro o verbo surge:
- Olhando fundo para o fundo dos teus olhos percebo que a menina deles já não é mais tão menina, onte está a íris que outrora me cativou?
O verbo de ligação já não consegue ligar a fala da escrita e as palavras que feriram alguém já não são mais tão afiadas, sem gumes.
Assim como as palavras que são voláteis, o tempo também molda e, do dia a dia, faz a noite da amargura.
. Como
. como uma
. uma escada
. rampa que sobe.
. que desce.
Quem sobe? A causa ou o efeito?Para o alto ou ao invertido, sem sentido coerente e de forma gradativa, vão-se os pensamentos para suas casas. Apesar de residentes de casas vazias, domiciliam-se no julgamento alheio e ali não podem comprovar, apenas aceitam, acalentados pela força da não retórica, eles perdem o inço, a força... Padecem pela sua destreza de não serem esquerdistas, mesmo que oníricos.
De quais olhos teus olhos tiraram a força de se perder em olhares alheios?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O dia aparentava querer chover. As nuvens, mesmo que distantes, assumiam um tom escuro, discreto, marcante. Na rua não mais que meia dúzia de pessoas sem planos ou panos que cobrissem os medos, lá estavam, esperando o acaso. Dentro dos abrigos, protegidos do frio e da água, os iguais, com a TV desligada por medo dos trovões e com velas no bidê no caso de um possível apagão, esperavam o fim.
Muito provavelmente a espera do fim tangencia a vida dos iguais. O fim do dia, das noites, do período, do ano... A espera por uma solução natural para causas naturais da vida. Aquela meia dúzia de pessoas que não teme a chuva fortalece-se no sentimento de liberdade e inovação e o que seria o início do fim, torna-se simplesmente o começo.
As narinas começam a sensibilizar-se ao cheiro de asfalto molhado, o mundo vira cinza, mais que o habitual, o céu desaba. Quem possuía, nos ombros, amparando de forma segura, o acalento dos céus resolveu sentar e deixar o mundo se virar. E soltos ao destino incerto os pingos de chuva entravam em cada canto desprotegido, levando o que quer que seja, para onde for de maneira desigual.
E a meia dúzia vira um meio disso, e depois, apenas um terço restando apenas uma pessoa, sozinha, sentada no chão apontando seu céu para o céu de todos. “quero chover também”. E por dias aquela pessoa que resistiu à chuva continuou chovendo em si, descobriu-se.
Entretanto, o homem que ficara dentro de casa durante a chuva, que acendera a vela e que perdera sua novela das nove, num diálogo macabéico falava de amor com seu ego:
- Acho que chove de qualquer jeito, o céu está escuro e o vento sopra para o sul, melhor colocar a lenha para dentro.
Faltava-lhe o fogo, para quê temer a chuva quando o fogo não existe para ser apagado? O homem derrubou lágrimas feito chuva e queimou-se com sua atitude estática de não se entender e não procurar um sentindo dentro de si.
- Por que chovo? Derrubo a tempestade de mim para fora, com trovões e uma quantidade imensa de chuva, acho que prefiro café a ter que continuar chorando.
Adoçou o café com uma quantidade exagerada de açúcar, e no sentido anti-horário, por meia hora, girou a pequena colher dentro da xícara até que o café estivesse suficientemente frio para que ele pudesse reclamar.
- Que frio! – Ele estava acostumado consigo mesmo.
Na rua, o céu já brilhava, o moço que não temia a chuva já havia voltado para sua vida, mas ele, no seu âmago de ser, ainda chovia e se cobria com a vida que escolhera ter: sempre fria e igual.