quinta-feira, 29 de julho de 2010

Pólen do seu próprio ventre

Hoje me dispo das caras que assumi ao longo dos anos e passo a escrever com a voz que me foi dada ao nascer. Passiva ou ativa é a voz que nasce dentro de mim e me faz deixar de lado, mesmo que por uns poucos devaneios, meu lado Fernando Pessoa de ser. É que o motivo que me faz unir as palavras é tão íntimo da razão humana que seria desumano perder-se na ficção.
Vejo meus problemas de forma exagerada, faço deles coisas grandes quando na verdade são pequenas. Não é intuito aqui comparar problemas ou menosprezar meus sofreres, mas há de se saber que existe diferença entre as dores. O que mais se ouve são os choros de amor de uma vida inteira, na sua forma carnal que agem feito cicuta nos corações desamparados. A magnificência do amor faz dele a chaga dos sensíveis. Mas é nesse mesmo amar onde as pessoas se perdem. Ao sofrer por amor se esquece de todo o resto que, por mais discreto que seja, pede um mínino de atenção, uma lágrima que seja, pede amor.
Ao ligar a televisão, num dia como qualquer outro, vejo um caso comum, mas com pessoas incomuns. Uma atriz de renome perdeu seu filho em um acidente de trânsito. Há ainda os desalmados sofredores de amor ou sofredores de inveja que dizem que o caso só ganhou relevância devida, pois aconteceu com alguém famoso. Tristes os que pensam assim. O olhar sóbrio da mãe, molhado pelas lágrimas fixas de uma semana, mas sóbrio, dizia que precisava de ajuda e mesmo assim dava um sorriso forçado, procurando dizer a verdade sem sucesso: eu ainda vou voltar a sorrir, eu ainda vou voltar a sorrir. O mantra que a mãe repetia ao saber que o filho não estava mais entre ela, e que era ele, muitas vezes o motivo dos sorrisos era como o alicerce de uma nova vida.
As chagas criadas no coração dos pais desse rapaz não são como as cicatrizes de amor, e não é querer menosprezá-las. As chagas que foram criadas coisa alguma há de explicar. E só quem sente pode dizer o que é perder o fruto do próprio ventre. Mas não somos árvores. As árvores vêem os frutos inutilizados caírem aos seus pés e apodrecerem num ritual heterofágico da vida orgânica. Sem a possibilidade da fertilidade ao fruto caído, a árvore mãe, involuntariamente, libera hormônio mortal ao pólen do seu próprio ventre. De que vale poder defender o fruto se o mundo não dá, deveras, tal liberdade. As amarras de outrora parecem ter ganhado força com a liberdade, o paradoxo da existência coletiva.
O pai chora um choro sem fim tocando seu saxofone e a mãe tenta passar felicidade e gratidão. Nunca mais serão os mesmos. Nunca mais. É como decepar uma parte do corpo vivo, é perder a vida ao longo dela. Parte fica e outra vai para não se sabe onde. Chico Buarque diz em uma de suas músicas que a saudade dói tanto quando visitar o quarto de um filho que já morreu, porque esse fato, supera a saudade, beira a transferência: por que não eu?
E ainda existem aqueles que põem a culpa na mídia ou em qualquer coisa que o valha: e se fosse meu filho, iam descobrir a corrupção? E se fosse teu filho, não estarias a perguntar isso, estarias tão longe de ti mesmo que fama nenhuma te faria voltar ao chão. O que é a vida se não um eterno sofrer? A questão é pontual e tange o realismo. Sofrer, por sorte, difere-se de ser um sofredor, felizes daqueles que ainda acreditam no sorrir.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O que é isso tudo se não uma confusão que acaba se entendendo por autofagia?

E eu fiquei esperando o tempo passar até que não percebesse mais aquilo que me separava da individualidade de cada segundo. Era como se agora o tempo fosse uma única massa homogênea dentro de um pensamento irregular sobre plenitude. Não mais queria explicar os avessos da minha existência, procurei apenas saborear aqueles minutos sem o tic ou o tac. Adormeci.
Ainda na ânsia de conseguir explicar, acordei sobressaltado. Fiz da caneta minha bússola. Não sei se perto das palavras encontramos algumas respostas, mas a visibilidade que eu tinha daquele momento era tão opaca que me desfiz da incerteza e me pus a transferir para o papel aquilo que me vinha em mente. Na vil tentativa de conseguir gostar de algo, li com calma o que havia escrito. Amassei e joguei fora. Onde adormece a capacidade da auto-apreciação?
Há alguns dias não sentia fome de verdade. Comia por convenção, uma fome cronológica. E era o tempo que me dizia tudo: coma, vista-se, tome banho, chore, coma, ria, chore, chore. O tempo passava a eu sentado via a janela que se mostrava tão áspera quando meu rosto não barbeado. Era aquela realidade que eu queria transferir para o papel? Era aquele mundo com o qual eu tinha contato diariamente que eu queria que saísse de mim? Minhas divagações sobre o que era a janela duraram poucos cinco minutos e já passei a pensar sobre o que o mundo poderia me oferecer, por que não o contrário?
E da rua via só o horizonte. Não que os outros fatores que a compõem não sejam relevantes, mas acabo filtrando minha visão para aquilo que me faz bem e, naquele momento, era o horizonte que eu queria ver. Queria o horizonte por ser um destino, um fim e ao mesmo tempo um começo, outra época, outra janela. Peguei a borracha pra que, com uma lambidinha na ponta, tentasse apagar a caneta. Sem sucesso me perguntei por que ainda guardava uma borracha se há muito não usava mais lápis. Ainda mirando o horizonte, percebi que sou cego de palavras. Nenhum vocábulo que seja parte da minha pequenez em conhecimento conseguiria desenhar o que se vê pela janela em cada segundo. Quis desenhar, mas não nasci assim. Então, sem medo escrevi na folha que ainda trazia marcas do finado texto que o antecedera já carimbada pela força de minha grafia torta: reclamar é o ato falho da vida adulta, por vezes o tempo, o horizonte, a barba, o fim, mas quase sempre se pede uma realidade que não existe, nem no desenho daquele que queria desenhar, que sabia apenas amontoar palavras.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Da arte de rua ou da rua como arte

A rua é linda, a arte mais ainda. Entretanto, a ideia dadaísta de arte pela arte apenas permeia a teoria. Fazer exclusivamente arte, em um mundo capitalista significa fazer dela seu trabalho. Trabalho. Arte. Para alguns a gradação que precede esta explanação não estabelece um elo e faz do ponto final que separa as duas palavras um abismo impossibilitando a relação. Será? Ao passo que o conceito ‘trabalho’ é maleável e ‘arte’ volátil até onde é possível impedir relações? Ou melhor, será que as relações sempre existiram e não nos damos conta? De certa forma, ambos auxiliam na construção de relações sociais, são semelhantes apesar de distintos. Algumas pessoas, inclusive, associam arte à falta de trabalho ou à ausência de vontade de trabalhar, preguiça. Tem-se a subjetivação da identidade trabalhadora.

Sem querer fazer uma crítica bruta ao capitalismo, às vezes fica a impressão de que o mundo perde suas cores mesmo tendo ciência da gravidade disso. Quanto mais rápidos ficam os passos das pessoas apressadas no meio da rua, maiores são as preocupações e menores as percepções. O mundo dos artistas de rua, por vezes, parece ser paralelo ao usual e, se por um minuto da correria do dia-a-dia alguém para com o intuito de admirar, chora a sua incapacidade de rumar sua própria vida. E mesmo que em dias agitados de Copa do mundo onde o verde briga com o amarelo para ver quem aparece mais nas vitrinas das lojas, poucos param para ouvir as palavras de Leminski ou Drummond proferidas por bocas de outrem. Preferem dar aquela olhadela que se dá ao desprezo e seguir seu rumo, mesmo que mascarado como palhaço alguém grite a falta de essência nos dias cinza da cidade.

E mesmo que um desses palhaços tristes que andam pela rua com uma flor de plástico no bolso lacrimejada por resina diga que o dinheiro não importa para ele, como viver sem comprar/vender/gastar? Estes verbos foram conjugados graças ao desenvolvimento desenfreado do capitalismo, fazer arte em troca de dinheiro é querer trocar valores de origens diferentes. Os artistas de rua não procuram dar valor a um sorriso, estabelecer um preço para o sentimento bom de estar feliz, eles procuram reconhecimento por transformar a arte de fazer os outros felizes um trabalho digno e nobre. É nobre ser um curinga dentro de um baralho de iguais, sublimando as angústias do quotidiano em algo que de fato agrade aos olhos.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Se eu pudesse

Plantaria uma moeda

Em várias casas,

De todos os lugares.

Ia fazer mais sucesso que Papai Noel

Ia secar muitas lágrimas

Ia findar muitos choros

Ia calar a fome

Ia cegar muita gente.

Bendita moeda!

Se eu pudesse

Correria pra bem longe

Onde ninguém mais me pedisse uma moeda

Onde ninguém mais precisasse dela

Porque se eu pudesse

Se eu pudesse mesmo

Acreditaria em tudo que penso

Jogaria meus pudores no olhar horrorizado de alguém

E deixaria de pagar o aluguel do mundo

Naquele dia ela acordara feliz. Na boca, o novo batom cor carmim, no coração, mais esperança que o normal. Alimentara-se bem com um belo bolo de laranja do mercado vizinho, saiu sem pressa, à passos curtos para o ponto de ônibus. Lá, percebeu que as pessoas sentiam de longe o seu perfume, era isso que ela queria: ser notada.
O moço de camiseta branca que estava ao seu lado, pela primeira vez, depois de anos pegando o mesmo ônibus, no mesmo ponto, resolveu dar uma olhada mais masculina na moça. Estava realizando seu desejo, isso a fazia bem. Nunca havia imaginado que poderia ser quista por algum homem, que de alguma forma, fosse o motivo daquelas viradas de cabeça disfarçadas e sem vergonha para ver o todo. Esse sentimento de satisfação estava sendo provado pela primeira vez, mesmo que nervosa, com borboletas no estômago, ela sorria. A gengiva ficava a mostra, tinha um tom profundo de vermelho, demonstrava saúde, apenas no sentido figurado.
Na bolsa não levava muita coisa: maquiagens, para manter a arte impecável que fizera no rosto para esconder as marcas do tempo, absorventes – estava nos seus dias e isso dava a ela um tom ainda mais feminino -, a carteira com pouco dinheiro e um pacote de bolacha, no caso de ter fome. Antes, andava pelas ruas querendo ser um desses itens fracos que compunham o interior da bolsa, queria poder ser carregada pela boa ou má vontade de outrem, não tinha vontade de ser móvel.
Não por preguiça, não por medo ou insegurança, antes, a moça não tinha vontade para nada por nunca ter notícia do que era isso, por não ter tido um padrão a seguir e mesmo que alguns sejam excludentes, são extremamente necessários para a formação de um caráter sólido. A moça era feita de pedaços, cacos espalhados. Nem ao dormir era ela mesma por inteiro, era sempre uma metade.
Mas como havia acordado diferente? Como pudera, de súbito, usar os presentes de aniversário que ganhara da empresa onde trabalhava (um estojo de maquiagem e uma loção para banho) pela primeira vez e encarar o mundo sem muitas horas de espelho? Como encontrou a vida numa noite de sono?
O ônibus havia chegado. O moço deu a vez para ela, a moça, radiante, quase caiu num nó de pernas provindo do amolecer da felicidade. Sem perder a classe ou demonstrar o desalinho subiu reboladamente, num compasso sinuoso de quadril. Sentou-se nos primeiros bancos próximos ao motorista e apesar de ter lido no aviso que era impedido o diálogo com o dirigente, ela deu um sorridente bom dia, coisa que nunca imaginara fazer.
Embora o dia estivesse nas suas primeiras horas, ela trazia no olhar uma vivacidade de fim de tarde, fim de expediente, início de vida. O moço do ponto de ônibus ainda olhava para a moça com desejo, aquilo fazia dela a pessoa mais feliz do mundo. Pensou em sentar ao lado dele, mas não teria o mesmo prazer.
Depois de uma curta viagem, seu ponto se aproximava. Ela puxou a cordinha tendo a certeza que seus dedos ficaram amostra para quem quisesse até para quem não quisesse ver, evidenciando suas unhas pintadas de rebu para a mulher ao lado. Inveja, foi isso que a outra sentiu. Disfarçadamente a mulher invejosa do banco ao lado olhou para suas unhas mal cuidadas e percebeu que a vida a fizera feia.
As mulheres, no fundo do fundo, se arrumam para as próprias mulheres. Por mais que o olhar do moço no ponto de ônibus tivesse lhe levado aos céus, aquele olhar de inveja da moça que sentara próxima dela dera-lhe um orgasmo sentimental. De longe, antes de o ônibus partir, mandou um beijo para o moço junto a uma piscadela sensual e o motorista, de forma cordial desejou-a um “volte sempre”, coisa que nunca fizera antes.
Não estava inteiramente acostumada a ser o centro das atenções, mas a isso se habitua tão rápido como uma criança que veste roupa nova. Olhou a rua, pela primeira vez, com olhos que queriam.