terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Jardineiro

Cabe a nota:

Um homem caminhava sozinho num dia chuvoso qualquer. A bota, já furada pelo tempo, deixava pedaços de si pela estrada metaforizando a vida do homem que foi dividida, feito herança, em dois países, cinco estados e quatro corações partidos. O que caminhava com a bota, então, era só a marca de uma vida partida. Mal sabia o homem que os pedaços da bota eram sementes. Em outro dia também chuvoso foi surpreendido com trezentos e cinquenta e oito pés-de-si que brotaram por conta da umidade. Quando não chovia, ele passava religiosamente pelos lugares para regar seus brotos. Achou perigoso deixá-los espalhados, levou todos os trezentos e cinquenta e oito para a casa que dividia com a bagunça. As mudas criaram raízes e conseguiram dizer ao jardineiro-em-falta que as outras partes espalhadas careciam cuidado. Lá foi ele. De porta em porta, na ânsia de florecer em alegria viajou os dois países, cinco estados e quatro corações. Voltou com dois porta-retratos embrulhados em plástico bolha, um corte de cabelo, duas camisetas novas e um impagável sorriso no rosto. Ao chegar em casa, encontrou apenas a bagunça, a colheita foi feita à distância.

Fisiologia do medo

O medo é um vírus
Há pouco descobriram isso
Assim, não há vacina.
Talvez nem tenha dia algum
Ele é um vírus
Ele é algo que cresce e incapacita
Limita
Delimita
Transmite e constrange.

O medo, na verdade, tange o desespero
Que esperto:
Porque ali no abismo entre uma coisa e outra ele tira as flores circulantes nas veias e deixa todas à mostra, na camada mais fina da pele.
Frágeis, coitadas, vão perdendo as pétalas
O cheiro
O amor
E o sangue fica fininho
Sozinho
A espera de um novo plantio.

Sobre amar

Do amor eu sabia apenas a metade
E considerava muito!
Até que me vi imerso
Repleto
Praticamente dono de um universo
E descobri que sabia menos ainda
Sei quase nada
Só sei que ele me basta
E assim sigo
na jornada vasta
leve e sorridente de uma vida acompanhada.



Encontros

O motorista avisou ser o final da jornada, trinta e cinco pessoas, um gato e um cachorro - os quais travaram grandes lutas em seu universo gaiolístico - respiraram aliviados. 
Ao meu lado, estavam uma mãe e sua filhinha catarrenta que não cansou de esfregar a secreção em minha perna durante a viagem, mas quem importa? Por muito tempo fiquei absorto olhando aquela fragilidade potencialmente capaz de mudar o mundo. Realmente uma grande loucura isso de crescer. Vi-me pensando, inclusive, no eu-menino que na década de noventa borboleteou sem saber que um dia chegaria aqui. Enfim, cheguei. Tive que acenar brevemente para a criança, uma vez que a mãe não muito aprovava nossa amizade. Como é insana a vida e seus encontros. Como será o futuro daquela menina? Conseguirá se livrar das garras da repressão e vestir/beijar/comer/abraçar/trabalhar/estudar o que quiser? Não sei, Prefiro acreditar que sim e sendo sim a resposta que me tranquiliza para deixá-la ir, seu nome passou a ser Mariana, cursou história na Universidade (escrevaquiauniversidadedeMariana) conheceu uma menina que fez suas pernas amolecerem desde o primeiro dia que a viu e aceitou que não só de meninos e meninas são feitas as famílias. Não só da diferença é feito o amor, ainda que ele seja um verbo que não transita aos gostos de quem o conjuga. Mariana é vegetariana e apesar de muito tentar não consegue parar de tomar leite e seus derivados. Aí um dia Mariana entenderá que ela precisa comer o que a faz feliz e pela primeira vez (depois da adolescência conturbada, aliás) conseguiu comer um pedaço de pizza sem a culpa da lactose ou da anorexia que a assombrou durante um período. Foram anos difíceis para Mariana, mas ela ainda conseguia sorrir ao ouvir suas músicas preferidas deitada na cama acariciando seu cachorro Zeca, isso sim a fazia bem. E como.
Mariana desceu do ônibus nos braços da mãe e em minha cabeça o presente e o futuro iam de mãos dadas. Preciso ressaltar a bagunça que é a dança destes dois tempos, mas como dançam lindamente a despeito da nossa angústia. O futuro é arredio, não tem muita segurança em seus passos, mas dá suporte para que o presente complete seus movimentos que, por natureza, são firmes. E, assim, a dança segue, Mariana cruza o horizonte e eu permaneço segurando o porvir daquela menina de quem eu só conhecia a textura do catarro e minhas expectativas a respeito dela. O mundo é vasto e cruel e assustador e delicioso e estranho e desgraçadamente difícil: se eu que não a conheço já espero tanto,imagina quem protege até mesmo seu catarro.
Desci do ônibus. Caminhei pela rua e conheci Miguel, Joana, Clara, Augusto, Astolfo, Etelvina e o cachorro Tob em duas esquinas, um destino incerto e um atropelamento. E tal qual Mariana, acompanharam-me em longos quinze dias de UTI nos meus sonhos administrados em via venosa. 

Até que o futuro parou de dançar.