segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O que é a poesia
Se não a ausência de algo,
O sopro na fonte da saudade:
do que foi, do que é, do que virá.

O que foi está lá
Tão logo se lembra
Dá aquela dor agridoce
Foi, não será mais. O que eu fiz?

O que é?
Não se sabe, talvez.
Perde-se a essência do agora
Ele existe? O que é essencial?
Talvez nada além do pensamento.

Será?
Será que é assim, tão tempo-dependente
A força que nos move?
Não sei...
Mas está na hora de descobrir.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Eis que surgiu uma imagem no espelho. Ainda intacto, o espelho mostrava um reflexo aos pedaços. Era difícil encontrar uma simetria naquele rosto que, apesar de bonito, mostrava os cacos de uma decadência inevitável. O rapaz sabia, sim ele sabia, que o futuro só não era mais infame que o passado, mesmo assim ele quis voltar para um certo dia onde ele fora menos partido. Então partiu. Calou aquele grito espontâneo que surgia do âmago para retornar ao seu mundo de outrora. Como é bom, ele pensou, como é bom não ser o hoje agora. E o futuro só existe pela minha essência do ontem? Que confusão é parar e pensar no tempo. Talvez ele seja uma dessas coisas que a gente não precisa pensar para existir, vai de encontro a Descartes, mas conforta essa inquietude que é não saber lidar com o tempo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A gente vê, assim, de repente, que a porta ficou menor do que o habitual. Que a roupa que outrora vestia tão bem ganhou novas (des)formas. Aí, então, a gente percebe que o mundo não quer mais ser o mesmo. E a gente briga, grita, chama a mãe, o pai, o santo e o capeta, só que nada disso adianta. É que o horizonte parece não ser mais o mesmo, mas pertence a uma mesma janela. Ou seria na janela a mudança? Vai saber. Tem tanta coisa mudando nesse mundo. No mundo de quem? Ih, pergunta retórica no primeiro parágrafo? Vou passar para o outro.
Aí cheguei aqui e vi que não tenho muito a dizer: acabou. Hoje bateu aquela vontade boba de escrever bobagens e de bobeira colocar aqui. Só porque o mundo parece mudar. Ou talvez porque o mundo não mudou e eu só mudei de óculos (também não). E, na última das hipóteses, essa reflexão pode muito bem ser efeito de uma barriga cheia de comida e uma cabeça vazia de... De quê?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Maria Bonita


O som da vitrola dizia sim. Os pés esboçavam uma dança ao mesmo tempo em que o rosto demonstrava um tom austero e impenetrável. Dentro de suas contradições a mulher que tinha por hábito usar vestidos de chita o ano todo escutava a música que lhe fizera sorrir um dia. Aquelas notas lhe eram habituais e tinham lá no fundo um quê de primeira vez. Saiu dançando na certeza de que não sabia dançar, simplesmente porque queria ver o vento brincar de existir com o rodar de sua saia. Simples assim, sem que a vida pesasse mais que a distância entre seus pés e a felicidade de estar livre.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O que é, então?

É o homem por não ser bicho,
É a vida por não ser pó.
E é o que for por deixar de ser.

É o destempero da alma,
É a fuga solúvel do desespero.
Tão leve seria o vento
Se não fosse ele o sentido do cheiro.

Se é o mundo, então
Que seja o peso da vida:
Fere a pele inatingível,
causa dor ao outro eu.

Morte ao fim,
Pois é a vida que à vida dá sentido
E a dor não acaba, transfere.

sábado, 20 de agosto de 2011

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Acorde. Olhe para a janela e veja que além dela não existe nenhum sol que não o seu. Porque toda essa falta de graça vem da tua óptica escassa de não perceber o que é meu. Deixe que a ferida queime, que a dor se faça. Cale a tão distante farsa, ela não é mais daquelas que se teime. É uma sóbria mentira da vida estranha de ser caça. Maldita hora que se retira a mágoa e surge a desgraça de um olhar perdido. A solidez de um horizonte que pira traz a fluidez de um presente maldito na boca de alguém vencido. Durma. Olhe para a sua janela e veja que dentro dela não existe mais um sol que não é seu. Tal qual Perseu, leve à Medusa a mudez da manhã inexistente e sorria pela força petrificada de um olhar que outrora era opaco e carente.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A música era boa. Não era apenas possível falar do que ia aos ouvidos. Na verdade, era uma efusão de sentimentos que levava à insanidade limítrofe do aceitável socialmente. Sociedade? Nada importava, absolutamente nada que estivesse fora daquele mundo, uma nova realidade que brincava de ser ou não ser com o imaginário idealizado daquele rapaz. Ele nunca fora muito de acreditar na vida, mas naquele dia, os olhos de outrem fizeram renascer nos seus algo que há muito havia sido perdido e ele nem ao menos tinha noção disso: da existência de algo, da negligência e da corrosão do próprio eu que isso causa.
No chão, parado, o rapaz se viu como um feto no ventre materno. Na posição da origem biológica do homem cultural, ele se percebeu. Cada centímetro do seu corpo era invadido pela música que tocava lentamente como algo sólido. Estranha essa relação que ele tinha com a música. Era como se tudo fosse a primeira vez, excetuando seu contato com aquelas notas musicais. Não é fácil e nem tão pouco complicado explicar o sorriso daquele moço quando tomou conta da sua falta, da sua própria ausência e o paradoxo que isso implica é tão atraente quanto parece; ele de fato não era o que estava sendo. Era um sorriso que brincava de ser alegre e triste com o tremor dos músculos no canto da boca. Era a movimentação involuntária de algo que pertence apenas ao mundo das ideias. Ele percebeu que não tinha nome, casa, número de telefone ou roupas para usar. Tudo era muito novo a ponto de ele não conseguir mais se reconhecer. 
Levantou. A firmeza quase sólida dos seus joelhos o fez rir. Como? Assim, de súbito, ele queria sair correndo para sentir tudo o que poderia com aquelas milhares de células receptoras que ele não sabia ter. Ele não sabia de nada. Era o cúmulo da ignorância e mesmo assim sorria. Patético. O mais incrível é que ele parecia ter noção de toda sua babaquice e não se importava com isso, afinal, ele não sabia de fato o que era e rir de si era como rir do outro. Que sádico. É provável que o sorriso que aparentemente bordava no seu rosto um semblante de uma sóbria felicidade fosse, então, o sadismo de quem ri da desgraça alheia.
Desgraça foi perceber o mundo. Tudo estava lindo até que a música parou e o resto - não lixo, apenas a sobra daquilo que ainda não existia para ele: o universo dos outros - tomou a batuta, regendo a sinfonia. Desarmonicamente ele quis voltar ao início, retornar ao lugar onde ele não tinha noção de existência alguma. Muito fácil seria, além de sádico ele é covarde? E foi justamente pensando no mundo que o feria onde ele se descobriu. Era palidamente preso na sua ânsia de ser que, numa transe multifatorial, ele simplesmente se esqueceu da essência, se é que existe uma. Aos poucos ele ia voltando ao chão, abraçando seus  joelhos que já haviam voltado ao cúmulo da fraqueza. Enquanto acariciava seu corpo fraco, que era a expressão máxima da fragilidade, teve noção que ainda usava a mesma calça da adolescência. Era como se o mundo inteiro o levasse, numa questão de segundos, ao futuro onde ele era infeliz, perdido e alguém sem noção nenhuma do que é. Aí o leitor pergunta: é o quê? Simplesmente assim. É.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Perdição perdida


Eu simplesmente esqueci
Caí, assim, como quem corre.
Sim, mesmo sozinho
Fugi de mim.

Lá na frente, em algum lugar
Vi que uma árvore fazia seu papel
Qual, balançar?
Não, ser.
E eu?

Peguei a retórica de outrem
E percebi o que me era particular.
Propriedade engraçada essa coletiva.
O que é de quem é
Só o é pela ausência do não.

O meu, então
É tão teu quanto o teu olhar é meu.
Meu paraíso, meu mundo.
Minha perdição.

Egoísmo poético esse
Quero, tenho, procuro.
Cadê o egoísmo nosso,
Aquele primeiro?
Talvez esteja ali,
Onde sozinho eu me perdi.
 

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Quintaneando

E aqui vai:
De tão leve, perdeu a graça.
Caiu, pobrezinho, no riacho ali perto.
Sozinho, molhou todo o corpinho, quieto.
Era frágil, mas forte.
Dentro de si carregava um mundo inteiro.
E ia passando.
Passou a fome,
A sede e até mesmo o frio.
Mas cantando baixinho, sorria o mundo.
Cantava os versos que não conhecia.

E da janela de um tal hotel.
Alguém brincava de ser Quintana.
Porque só com a leveza de uma brincadeira
É possível não ver a tristeza das passagens
e ver os passarinhos da vida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011


Na falta do que falar, mais uma vez, tento fazer da metalinguagem minha fuga. Há muito, escrever se tornou uma forma de encontro entre os eus que coexistem em mim de forma que, juntos, traçam um caminho, no mínimo, engraçado. “Pra quem é vivo, não há destino, há trajetória”. Isso me fez pensar muito. Sempre achei que o destino fosse algo que não se explica e, por isso, acabei caindo no comodismo de nunca pensar muito sobre ele. Que grande pecado eu cometi. Desta maneira, eu simplesmente me deixei levar, fui sendo só mais um integrante do fluido obscuro e inteligível que eu chamava de futuro. Com esta simples frase que leva aspas por não ser minha, acordei para o que eu chamo de agora. Percebi, olhando minhas fotos da parede e meu objetivo esquivo da realidade, que tudo o que eu faço é uma projeção de tempos que não são equivalentes ao atual, entende? Como se eu vivesse no futuro enquanto o presente ia vivendo por si. Eu sei, constatações como esta são feitas todos os dias e não há novidade alguma nisso tudo, mas é que, no meu caso, precisei ouvir de um quase-estranho a frase que me fez pensar no meu quase-viver.
E o que tudo isso tem a ver com escrever? Pra mim, muita coisa. Escrever sempre foi algo que não se explica, assim como o destino. Aí me vi num lugar onde eu não queria estar: na dúvida sobre escrever. Será que escrever é realmente isso? Igualando ao patamar do destino, por medo de compreender, eu joguei o que mais me dá prazer à imprecisão. Nunca fui muito fã de textos-desabafos em blogs, mas é como se eu retornasse ao início de tudo para poder encontrar um novo sentido para minhas palavras. Ou melhor, tudo isso pode ser um drama, uma novela que eu construí através de criações dentro de uma realidade distorcida pelo meu ego dissonante, mas é válido (eu espero).
O que me agrada, na realidade, é que essas palavras aí de cima, meu amigo, só vieram depois de muita reflexão, um creme de abóbora e algumas músicas. E é por isso, só por isso, que eu não sigo muito as receitas não. Acho que tudo precisa da dosagem do momento, do que precisa e daquilo que é desnecessário. O bolo/o texto/a conta/o escambau é meu e só os meus e eu podemos dizer o quão insosso está o sentido de tudo. Mas para quê sentido? Faz sentido mesmo procurar sentido para tudo? Quem sabe, o pulo do gato das receitas da vida seja o tempo de espera e o tamanho da pitada de paciência. No limiar da sanidade, então, a gente segue: os eus, os meus, vocês e quem mais quiser.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Agradeço pelas diferenças. Gosto do preto porque há o branco para a comparação. Sinto que o doce faz sentido quando provo o salgado. O frio só é gostoso por saber que o verão virá. Sim, sou muito grato por saber que o mundo não é uma eterna segunda-feira e que os sapatos não são todos esquerdos. Por quê? Simplesmente porque de nada me adianta acreditar numa vida que não oscile, que não tenha uma queda brusca depois de uma gloriosa elevação

quarta-feira, 9 de março de 2011

Desabafo epitafiado

Já escreveram sobre o último conto, a última crônica e até mesmo o último poema. Não sou ninguém perto dos grandes nomes que se aventuraram a dar uma derradeira escrita de maneira determinista quanto à forma. Por isso, de modo redundante como me é de costume, faço o último epitáfio. Sim, leitor, uma ênfase poética a algo que já é fim por si só, mas com um quê literário dado o tardar da hora: madrugadas inspiram.
Sempre pensei na morte como algo a não se pensar muito, tive medo dela muitas vezes. Quando me via pensando em morrer, tratava de trocar de pensamento no ato, não que eu seja adepto aquela história de atração universal, mas não duvido. A morte é estranha, assume tantas formas que, no fim das contas, não sabemos nem do que temer: se é de uma pedra que cai, de um carro que vem a nossa direção ou uma doença que vem de dentro. Acho que a morte é parente próxima do medo e da preguiça. Talvez um trio de primos...
Mas se um dia ela vier me buscar – se busca ou traz, talvez simplesmente permaneça, não sei – prefiro que esteja bem vestido, não sei qual traje usar pra ocasião, mas penso que preferirei minha camisa xadrez azul, cai bem pra tal acontecimento. Quero estar com um olhar sóbrio para o horizonte como quem espera uma notícia boa, afinal, ninguém sabe se é bom ou ruim morrer. Vai que é bom e ninguém teve notícia. E se for um formigamento gostoso dos pés a cabeça que termina num sentimento de leveza tão grande que, quando percebemos, estamos nas nuvens brincando de ser criança? Por isso quero estar descalço, acho infame pisar nas nuvens com o sapato que caminhou por este chão sem luxo algum.
Pode ser também que seja uma mudança de plano, patamar ou transparência. E se todos os mortos apenas ficarem transparentes e inaudíveis? Ficam imóveis apenas para a burocracia funerária e depois dão um suspiro aliviado de quem vive mais uma vez num novo mundo: o Éden fúnebre. Coitados do que são cremados... Deve ter alguma ala para aquelas pessoas que viraram pó, um monta e desmonta, uma reconstituição. Devo repensar a ideia de ser cremado, nota mental.
Digamos que ela tenha vindo, a morte. Quero estar lendo um bom livro. Tomara que ela não me pegue lendo almanaques baratos ou encartes não ortodoxos. Prefiro fazer a pose de bom moço até a morte. Darei a mão com cuidado, espero que seja gelada. Seria uma decepção saber que a morte é quente, não combina. Aí começaria o dilema, como avisar aos amigos? Uns longe, outros perto, mas longe. Enfim, notícia ruim (e espero que seja) corre rápido. Enquanto sou maquiado e ganho o brilho no rosto que me faltou na vida, meus amigos recontam as mesmas piadas, um clima de reencontro para a despedida. Os familiares sofrem com a perda, mas já repartem os bens, no meu caso, alguns livros, meus óculos e papéis de importância para mim, mas de valor inexistente para os outros.
Não quero ter velório, já aviso. Acho triste demais, pelo menos na morte quero ser alegrinho. Prefiro que aqueles que estavam lá por falta de opção contem para os que não foram por falta de oportunidade que o meu velório foi uma coisa bacana e diferente. Ficou-se debatendo o meu (não)sucesso, a minha (im)prosperidade e a minha (anti)simpatia. Não quero ser egoísta, claro. Peço também que comentem sobre casos da atualidade e que remetam os fatos a minha pessoa: o que eu acharia disso tudo? Não é de bom tom falar de dólar, euro ou reais, a conta da funerária já fará esse papel. Um papo sobre a vida, literatura e o destino que a humanidade está tomando cai bem.
Não sei se quero comida. Quero que todos fiquem acordados para um debate legal. Está valendo também cada um falar sobre a sua própria vida. Prefiro que não falem muito do passado, só se forem memórias dignas de uma lágrima, uma só! E que seja esse o único motivo para lágrimas. Se a morte me veio em tal data é porque eu não mais serviria como humano vivo, tudo faz sentido no fim das contas. Não quero que procurem explicações, a morte não é explicada, é compreendida e quem não compreender que pegue o número do meu terapeuta. Capela de velório não é divã.
E antes de me cremar/enterrar/mumificar (ainda não decidi), que não seja esquecido de colocar nas minhas mãos um exemplar do meu último livro publicado (na falta de publicações vale qualquer obra de Clarice Lispector ou Machado de Assis) junto a uma foto de meus pais e meu irmão com a assinatura das pessoas que eu amei na vida no verso (todas as pessoas que se julgam amadas podem assinar, no pós morte decido quais apagar). Pretendo ter boas lembranças mesmo que não mais tiver, de fato, uma memória para armazenar.
E pra quem acha tudo isso um misto de pessimismo com humor negro de péssima qualidade, fica minha saudação, sou adepto àquela história de que se trata inimigos como amigos. Porque mesmo que a morte leve minha lembrança física, sei que vou ficar de um jeito ou de outro em algum lugar. Talvez eu passe a morar num porta-retrato na casa de alguém, ou na página de um diário com uma gota de lágrima que borrou a tinta. Pode ser que eu me fragmente em alguns pedaços e viva para alguns alguéns por aí. Nada mais poderei fazer além de ser a lembrança de alguém que sorriu quando teve vontade e chorou quando quis, porque se a morte é imprevisível ou inexplicável, a vida é a potência infinita de tudo isso.
Feitas as projeções, só tenho um pedido: que eu não morra antes de mim mesmo, deve ser triste viver numa vida latente, potencialmente incapaz de viver. No mais, não me importo com a cor do caixão ou a quantidade de flores, contanto que não tenha velas e que eu esteja de xadrez azul e devidamente descalço preparado para brincar mais uma vez.

domingo, 27 de fevereiro de 2011


Ao lado dos livros,
Ali, na estante
O pó do meu medo fez casa.
Acomodou-se nas palavras
Tão confortável quanto um ponto final.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Seja lá qual for o motivo ou a razão, o rapaz já não pensava como antes. O mundo transpira essa modificação imaterial de consequências físicas e sua vida já havia mudado o suficiente para que ele percebesse o quanto  o mundo é de verdade. Nada será como um livro: editado, impresso, lido, amado, vendido, o que enriquece a editora e dá os devidos louros da vitória ao autor. O mundo é bem pior. O mundo é vasto e não é do Raimundo, o mundo é de quem quiser, um leilão tão grande, mas ao mesmo tempo tão pequeno, que ninguém vê. Assim como ele não viu, assim como ele nunca veria sem seus óculos. Estava farto, tão farto que sua fadiga o impediu de agir, e ali ficou: como sempre ficara. Mas agora ele sabia que já não era o mesmo, já não era a mesma estátua sem expressão de sempre. Conseguiu, mesmo que paradoxalmente, dar um meio sorriso à meia vida que ele queria esquecer.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

E aqueles passos eram repertório de uma felicidade contida,
não mais que duas palavras e meia dúzia de xícaras de conhaque

Os olhos não conseguiam mais olhar para onde deveriam, a bebida já fizera o efeito costumeiro: tontura, insegurança de si e moleza nas pernas. Ele amava esse sentimento, era o momento onde ele mais se sentia outra pessoa, onde ele menos se preocupava com os seus problemas. A carreira infeliz e a vida também ausente de felicidade o faziam um bêbado confesso. Sempre que conseguia, ia para o bar sentir a vida de gole em gole rasgar sua garganta e cortar sua vida a um terço do que poderia chegar. Uma longevidade enclausurada e exilada num futuro tão obscuro quanto o presente infeliz.
Não conseguia mais caminhar por si, então, caminhou pelo bêbado que tomava conta do seu corpo. Fazia questão de beber no bar próximo a casa da sua ex-esposa, queria que ela visse a besteira que fez ao pedir o divórcio e que era culpa dela, exclusivamente dela. Mas sem filhos, depois de quinze anos o casal perde a cor, o sabor, e para não perder a rima pobre, o amor. O homem que habitava a carapaça etílica que fazia vezes de ventríloquo desalmado, sabia que a culpa também era dele. O casamento não é unilateral e de responsabilidade única da mulher. Ele também fizera por merecer: copos espalhados, toalha molhada, tampa levantada, sem contar nos jogos de domingo que contava sempre com a presença de moças sem pudores visíveis. Ele queria mais era o fim do mundo, do seu mundo, da sua dor.

E se jogou na frente do primeiro caminhão que passou na rua de sua esposa, onde calmamente ela sonhava com uma viagem que eles nunca fizeram para o lugar que eles nunca sonharam visitar, ouvindo a música só deles que eles nunca tiveram.

Não, ele não fez isso. E mesmo que fizesse, não teria diferença alguma na vida de ninguém. Sem família e com um teto desarrumado pela ausência de empregada, nada o impediria de ser enterrado como indigente. “Não, isso não!” Disse a voz do pingo de consciência que ainda lhe restava dentro do copo, ainda não alcoólico, de sua mente que oscilava entre o estado sóbrio e o podre de bêbado.
O sol no horizonte já dava o sinal de terça-feira com cara de domingo, ele pensou que poderia largar o emprego, mas não faz muito sentido tendo em vista que promessa de bêbado nunca vinga. Sem mais opções, resolveu vomitar o que lhe incomodava:

- E se eu disser que ainda te amo? Se eu disser pra quem quiser ouvir que teus peitos ainda são lindos e que tuas rugas não são maiores que minhas entradas? E se eu te disser que fui o pior marido do mundo e que não mereço teu perdão, tu me perdoarias?

Na cama do prédio em frente a esta cena com um quê de dramalhão mexicano a linda coroa de cabelos já vermelhos pela solteirice, apenas dormia sóbria de si sonhando com um marido que a amasse de verdade, afinal esse tinha sido o sonho de uma vida inteira que havia sido deixada de lado e trocado por um ilusão de casamento, uma projeção de marido e uma vida de farsa. Ela sonhava com o orgasmo que nunca teve.

- Beba a tua dor, coma toda a tua angústia e tempere com esse teu jeito insuportável que se anima ao maltratar os outros. Tudo tem um fim. E eu queria, de todo meu coração, que todos esses anos perdidos não tivesse recebido nem ao menos um começo. Vá para o raio que o parta!

Era o que ela diria.