quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Ela temia o futuro como se fosse algo que pudesse agarrá-la, tirá-la do prumo de fazer com que ela desistisse da vida. Sempre fora assim, desde pequena. Este medo do futuro fazia com que tudo na sua vida fosse regido pelo passado, um fantasma ou outro que já fizera parte de sua curta vida ditava as regras do amanhã. Por fim, seus dias eram sempre iguais ao ontem, não inovavam, não ganhavam o brilho do desconhecido.
Acordava sempre na mesma hora, com o mesmo despertador ganhado da mãe no natal de 1997, quando de fato passou a precisar de um ao sair das asas maternas. Esse fora um ato heróico para ela, que se dependesse única e exclusivamente de sua opinião, ficaria em casa o resto da vida. Passou a perceber que as roupas não perdiam os amarrotados sozinhas, que a comida não vinha pronta do mercado (até descobrir o microondas) e que a casa não tinha um botão autoclean. Mesmo assim, temia.
Temia não acordar, temia perder a memória, temia, temia e temia. Andava a passos curtos e lentos com medo de lesionar tendões. Mantinha fixos, na bolsa, um casaco e um guarda-chuva no caso de uma mudança repentina no tempo. Alguém fora do seu mundo particular chegaria certamente à conclusão que ela não pertencia a vida dela. E de fato era assim.
Boa família, bons pais, boa criação e educação. Em algum ponto essa sua insegurança deveria ser explicada, mas não havia como. Numa manhã cinzenta o despertador tocou diferente. Não era mais aquela música do desenho da TV vivaz e ampla, ele estava fraco, quase parando. Aquilo pra ela foi algo tenebroso, com medo ela apertou o botão soneca para dormir mais quinze minutos, como sempre. Dormiu mais duas horas. Ir ao trabalho e chegar atrasada ou ficar em casa e forjar uma doença? Era uma situação inusitada para alguém grudada à rotina. Por fim, foi.
Ônibus, catraca, troco, suor, sol do meio dia, chefe bufando. O futuro indiferente ao passado em fração de minutos passou a fazer parte da sua vida. Construir um destino foi novidade para ela, feito astróloga ela foi adivinhando os próximos segundos como se tudo fluísse em sua mente. Briga, demissão, último café na empresa, lágrimas, fim. Não fim da vida, ela teria muitos amanhãs pela frente, fim de um ciclo de quem vê a vida sem a sua principal essência.
Apesar de o termo essência de vida ser um tanto vago e relativo, ela passou a procurar a dela. Ainda de olhos marejados pelas lágrimas jogou o despertador fora, pilhas novas não resolveriam sua vida. A palavra nova soava com receio em suas sinapses nervosas, novidades, mudanças. Percebeu que havia crescido, tornara-se adulta sem querer. Quase sem querer ia despedindo-se da vida sem ao menos notar. Clarice tinha razão, pensou, o adulto é triste e solitário e isso não era apenas uma comunidade do site de relacionamentos mais famoso, era uma realidade na vida dela.
Pensava apenas nela, no que vinha dela e o que ia para ela, esqueceu que ao seu redor havia um mundo que indiretamente dependia dos feitos dela. Passou pela sua mente um filme de vivências negadas: caras pintadas, muros caídos, guerras, mortes, fome, miséria, desigualdade o mundo desabando e ela apenas preocupada com um medo bobo de não mais acordar, vivendo no ontem. O que a confortou foi o fato de saber que ela não era a única a estar de braços cruzados em relação ao mundo, infelizmente e isso a entristeceu da mesma forma que a alegrou, um sentimento antitético que a fez acordar para a vida, o despertador que sua mãe não dera. Nas mãos dela, o relógio de ponteiros parados delimitava claramente a sua situação, sem saber para onde andar, para qual lado ir, ela jogou o despertador no lixo. Ver os seus limites e definições alheias irem para dentro de cesto de lixo e espatifarem-se com o impacto despertou-a mais que a música da TV.
Resolveu, depois de anos sem, assistir a noticiários. Em alguns casos, não assisti-los faz bem, quando se é preocupado demais com o mundo, quando os olhos já são mais alarmantes que a vinheta do plantão, não era o caso dela. Não adiantava mais colocar faixas na janela “Yes, we can!”, não valia à pena deixar de lado tudo e viver uma experiência sociológica de igualdade social com os mendigos, não adiantava. Estava tão agarrada a sua maneira de viver, que as divagações duraram outros quinze minutos. Abriu a porta do freezer, pegou um pote de sorvete de creme que persistia ali por meses, uma colher e chorou. Chorou por não ser a única a perder a habilidade de construir a vida. O medo dela havia mudado de forma, se evoluiu ou se regrediu, não se sabe. Ela tinha medo, agora, de nunca poder ser aquilo que ela tinha noção que deveria ser e não era. Sozinha ela lamentou a sua atitude estática de negar o que se é.

9 comentários:

J. Machado disse...

Chegou com tudo hem carinha! Bom este conto. Tem razão, às vezes não vemos o que está claro, somente no sufoco é que despertamos.
Li também a crônica abaixo nota 10.
abração

rafael geremias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bruna Vicente disse...

Acho que o fato não é negar...é não aceitar.

Valquíria L disse...

Eu nunca espero realmente encontrar algo bom no "próximo blog", bem, hoje eu encontrei.

Gostei muitíssimo desse texto sem título no qual comento, inclusive, inspirou-me a postar 'Fortuna'. A crônica sobre a pedra de Drummond, achei "terceiroanista" demais, mas gostei muito da tua conclusão, procura o poema "Eterno" dele, é meu preferido (o poema e o poeta).

Jefferson disse...

uau!

Jefferson disse...

Aliás, sou seu fã a partir de agora!

Victória Freitas disse...

Confesso que deu um pouco de medo ao ler essa crônica.
Eu quase me vi no lugar dela. =S

Anônimo disse...

eu tenho clarice dentro de mim, mas ela tá saindo.jajá.

Anônimo disse...

Aperfeiçoando sempre o jeito de escrever!

Que talento, que talento!