Era magra pelo descaso, fora filha desgarrada, esquecida, uma filha
que não nasceu para os pais.
Acabou gostando, por algumas semanas, do crescimento mal contido de
sua barriga até o ponto que o jeans 42 não serviu mais. O peso da
barriga não era mais compensado pelos chutes carinhosos da criança,
o amor não era nutrido como deveria ser, mostrava-se desnutrida de
afeto, uma raquítica sentimental. E daquele parto normal tão
dolorido que só aqueles que ouviram os gritos podem explicar saiu a
filha da mãe.
Logo na maternidade a mulher que ainda sentia no próprio corpo as
conseqüências do parasitismo gestacional percebeu o ódio pela
filha. O sentimentalismo materno havia durado apenas enquanto não se
podia ver o rosto. E a súbita vontade de não a ter mais
desconstruiu todos os elos feitos ao longo dos oito meses e meio.
Magrinha desde que se fez, mostrava-se de mãos levantadas para o
alto apelando, mesmo sem saber para quê, por um abraço. A mãe que
deveria sair sorridente cheia de leite e amor pela criança que
carregaria no colo, saiu sozinha chutando o que via por estar com o
peito pesado e o corpo, sua futura fonte de sustento, destruído.
Desde pequena, então, a menina sem nome fora motivo de pena.
“Coitadinha, tão magrinha!”, “Pobre menina, não dura uma
semana.”. Durou uma vida. Tornou-se Maria das Dores. E pela
relatividade do termo vida e a transitoriedade da sua duração,
estima-se que uma vida seja muito tempo, uma eternidade para os que
esperam a morte, pois a menina, mesmo sem ter noção do que seria o
fim, já sentia saudades da época em que ainda não existia. E
baseada numa eternidade que acabava todos os dias a menina cresceria
cuidada por alguém. A eternidade dura até o ponto da decepção, a
partir daí ela se torna tão efêmera quando o piscar de olhos,
rarefeita feito fumaça e esvai pelas lembranças que antes unidas,
formavam a imagem do passado, presente e futuro personificados. É
como cair num poço sem fundo que, de repente, oferece um impacto com
o chão. A moça não mais tinha a eternidade ao seu alcance, não
era mais dela a escolha de seus atos, ela estava cega de olhos
abertos para o mundo.
A incubadora já era pequena demais para o bebê e, fora dela, a
criança não tinha mais para onde ir. Das Dores lutava pelo dó de
alguém com seus choros noturnos e involuntariamente espantava a
condolência das enfermeiras que tentavam dormir no plantão. Certo
dia, então, a moça da limpeza cansada de ver reclamações a
respeito de uma criança tão pequena resolveu levá-la para casa,
onde comem seis, podem comer sete, pensou dentro de suas vestes
amareladas pela sujeira de quem limpa. Apesar de bom coração, a
moça da limpeza não tinha um coração de mãe. Já havia tentado
ser mãe quatro vezes, mas só conseguia ser a mulher que levava
comida para casa, que arrumava a cama e que continuava seu árduo
ofício de limpar também na sua própria residência. Os filhos,
então, tinham casa, comida e roupa lavada, mas eram órfãos de mãe
viva, não seria diferente com das Dores que já era experiente na
orfandade.
Das Dores, apesar de leve, tornou-se um peso na vida de quem a
carregava no colo. Descuidadamente eram trocadas suas fraldas uma vez
ao dia, alimentava-se sempre no limiar da necessidade e chorava. Eram
lágrimas que não tinham fim, um pranto eterno de quem não vê
horizontes. Desde pequena, ela adquirira um ar opaco no seu olhar,
não tinha como as outras crianças o brilho de uma vida que começa,
era como se a menina já tivesse nascido velha, com a carga de umas
cinco vidas mal vividas.
A casa que não fora o hospital não lhe trazia ares de lar. Criada
para servir aos irmãos, adotou a vida de ser adotada. Calada a moça
tentava se lembrar de um dia que fora feliz, por falta de recordações
poupava lágrimas para uma tristeza maior, ou, no caso de ainda
restar esperança, uma felicidade incontida. Quem não sabe sorrir
acaba procurando alegria nas minúcias do mundo. A batedeira que
fazia um barulho engraçado ou o rodo que não limpava direito por
ser torto fazia com que a menina, por vezes, mostrasse os dentes para
o chão lustrado pela cera que persistia nas suas unhas mal cuidadas.
Em sua bagagem, acumulava olhos tortos e esquivos, que num tom
forjado denunciavam um preconceito camuflado, por falta de onde
guardar. Era no chão que procurava abrigo, não tinha raiz. Queria
tê-las para poder ser fixa, desprezada e enfim, ter paz. Seus olhos
não eram sincronizados, sua vida era torta como o rodo que empunha
para limpar a casa.
Cansou-se da limpeza, da pena e de todo o resto. Saiu ao mundo como
quem procura uma razão para viver e de rua em rua tornou-se mulher.
A moça que sabia apenas limpar e limpar sujava a paisagem urbana com
a sua vadiagem, como diriam os engravatados que passavam por ela com
olhares de nojo. E mesmo que o corpo masculino pedisse para jogá-la
na parede e fazê-la gritar, o asco de sua sujeira que cor nenhuma
explica impedia os engomados de desejar e a libido virava ânsia.
Ainda na rua, fez-se alguém. Agradada pelo papo do dono do albergue
entregou-se na cama ao homem errado como fizera sua mãe, talvez essa
tenha sido a herança materna. Alimentada pela esperança de ser como
os outros: casar, ter filhos e poder amar e sorrir. Ela disse ao
homem que queria unir-se a ele como mandam as leis. Homem nenhum
gosta de leis. O albergue fechou, abriu em outra cidade e ela ficou
sem ninguém.
Algo se mexia dentro da filha de outrora que numa metamorfose
multifatorial transformou-se em mãe. Não era raiva, ela não sabia
o que era. A barriga crescida chutava, pulava e, sem saber o que
fazer, a mãe do acaso apenas fazia aberturas laterais na sua única
camiseta, com estampa do Mickey. Dar espaço para a barriga crescer
não seria o suficiente. Em algum momento aquela barriga viraria uma
vida... Mais uma vida sem saber o que é sorrir? Depois de um dia
bebendo vodka barata, terminada a garrafa ela se mostrou feliz. E
sorrindo, gargalhando na verdade, tomou a decisão de sua vida: por
fim a sua eterna desilusão de viver. Não tinha o direito de dar a
alguém o destino que lhe fora imposto e com agulhas de tricô
encontradas no lixo de alguém fez carinho em seu feto ali, mesmo na
rua.
Escorrendo pelas suas pernas a cor do amor a fez feliz. O vermelho
que via nas vitrinas de dia das mães marcava sua pele tatuada,
deitou-se para esperar o fim, enfim. De mãos para cima, agora
sabendo para quem pedir o abraço, como na maternidade, entregou-se a
um novo mundo. Em seus braços ensangüentados, trapos sujos
imitavam um bebê. Ascendeu, então, para onde quer que seja, a
virgem de felicidade com o salvador da tristeza.
Não caiu ao mundo feito anjo, flor ou árvore, caíra feito gente.
Não dessa gente que vive do tempo, marca os passos e adora solidão
- mesmo quando está ao redor de outros. Veio como gente que cai na
contramão atrapalhando o tráfego, também não como diz Buarque,
pois caso fosse MPB, samba ou chorinho, cairia no gosto popular. Não
fora melódica nem possuidora de versos agradáveis, tinha palavras
secas e inteligíveis e, à prima vista, balbuciava um dialeto
contrário ao usual, proporcional ao seu tornado de sentimentos, pois
às vezes a linguagem é o reflexo da condição. Quem sabe o
problema tenha sido esse, ela nunca entendeu a língua daqueles que
disseram pra ela o que é viver, afinal, como diz Sartre, somos
aquilo que os outros fazem de nós.
Um comentário:
Hahaha (ouça meu riso histérico de estupefação). Uooow! Tavinho, conseguiu ficar 'melhor que casas bahia'hehe, sério. Gente. As letras também ficaram tingidas com a dor da moça, cada metáfora, prosopeia, comparação, tudo perfeito. Só ficou mais-que-perfeito porque o "dó" estava no masculino, daí foi demais, hehe. Já é um dos meus favoritos, dentre os outros teus (e olha que é difícil uma eleição dessas).
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