quinta-feira, 19 de agosto de 2010

E quem morre de feijão?

A sua vontade não era diferente de qualquer outra: tinha fome. Alheio a todo conhecimento que o encontraria num futuro promissor, o menino se entregava a suas vontades como a mãe se entrega ao filho recém-nascido, ou ao menos se entregava na época dele. Sem muitos limites, mas grandes preceitos para a construção de um caráter sólido, o menino, perto de completar seu décimo primeiro aniversário, fora passar as férias escolares na casa da irmã que já havia casado e morava na cidade. A princípio fora meio difícil deixar a casa no sítio, gostava de poder comer a fruta da sua origem, de fazer coisas escondidas e ter onde esconder, afinal, toda criança é assim.
Na transição do bucólico para a paisagem nem tão campestre, a mente infantil fazia voltas dentro de seus limites imaginativos: “Será que a mãe vai descobrir que eu matei a galinha com a funda?”, “Acho que posso vender mais pés de alface...” Sobreposto a isso, ele fazia planos de como seriam os dias longe de casa sem o olhar atento a afetivo da mãe. Tinha em sua mente uma liberdade implícita: irmã não manda, apenas aconselha, e conselho segue-se quando bem entender. É incrível como a cabeça de uma criança consegue pensar em tantas coisas ao mesmo tempo vai da negação à afirmação antes mesmo que se pense em uma resposta concreta.
No ônibus, onde viajava sozinho pela primeira vez, tinha vergonha de olhar nos olhos das outras pessoas. Pensava ser uma invasão de privacidade, fora isso, abusava da observação da vida alheia e, de súbito, percebeu que o menino da sua frente mascava chiclete. Essa sim era uma paixão incontida. Não eram os cabelos da Mariquinha, nem o perfume da Rosinha, sua paixão era o gosto mastigado do chiclete. Tuti-fruti, morango, hortelã, menta, o que fosse, o gosto não importava muito. Perdeu a vergonha de encarar os olhos alheios e fitava a expressão superior do menino aparentemente abastado que mascava como se fosse a última goma do mundo. Efêmero, o gosto do chiclete acabou e o riquinho, tentando esconder, grudou a goma mascada na parte inferior do banco ao passo que o ônibus chegava ao seu destino. Todos saíram menos o menino guloso. Ainda salivando pela vontade e temeroso pela ação de furto que era embutida naquele ato, descolou o chiclete do banco. Sim, mascou o que já fora mascado, aprenderia só mais tarde que poucas babas são comestíveis.
Acariciando a alma com cada mastigada no corpo rígido e sem gosto que trazia na boca ele foi caminhando em direção a sua irmã que o esperava na rodoviária. A irmã comentou que ele estava mais magro, precisava comer. Ele, mentalmente, lamentou como ela não parava de engordar, mas não teve liberdade de dizer, há muito ela havia saído de casa e a intimidade de irmãos vai se perdendo com a distância e a falta de contato. Ao chegar a casa onde passaria os próximos dias traçou um paralelo com o lugar onde morava: “apesar de pobres, éramos mais limpos”. Não que a irmã tivesse um padrão de vida elevado, mas possuía mais condições do que sua família no sítio, a casa de lá, apesar de ter o chão de barro batido, tinha um aspecto de limpeza permanente. A casa das férias, da irmã, tinha uma cor de sujeira, um tom que não mereceria entrar para a aquarela.
Os sobrinhos que tinham idade para serem primos, eram legais, uma simpatia convencionalizada pelo parentesco, mas choravam muito e sempre estavam com cara de criança gripada. A primeira noite foi um impacto: a cama não era boa, fazia muito calor e o cunhado (com cara de tio) roncava. Passada em claro a noite que tanto planejara durante os dias que precederam a viagem, acordou para um café simples, porém gostoso, que a irmã preparara especialmente para ele.
Teve a impressão que as coisas iriam melhorar. E de fato iam, o dia ia se mostrando ótimo, tirando a queda com a sobrinha e sua boneca-gente na lama. Ele saíra limpo, mas a boneca não, a sobrinha que guardava em sua feição sempre um choro de precaução, falava gritando que preferia a morte ao ver o cabelo da Stephanie (a boneca) assim. Apesar de pequeno, o menino já tinha noção sobre o que era a morte e achou engraçado como aquela menina tão pequena poderia citar uma palavra tão pesada com a leveza de um sim.
A morte. Isso o intrigava muito, nunca havia visto, mas já tinha previsto: a galinha que levara a pedrada com a funda sem dúvidas estava morta e aquele peso o impediu de comer frango no almoço, mas não o feijão. Aquele feijão. Feita de uma maneira desconhecida para a mente infantil daquele garotinho, aquela comida guardava dentro do seu aroma e também do gosto um sentimento de tudo. Tudo no sentido de tudo mesmo, ele não conseguia explicar o que lhe passava pela cabeça ao comer aquele feijão. Queria sempre mais. “Esse menino é furado!” Falava a irmã arrependendo-se por ter evidenciado a magreza.
Mas o almoço não fora suficiente, não para ele, um guloso. Muitos diziam que era ‘magro de ruim’, mas a irmã não sabia dessa fama. À passos lentos, depois de um café que servia como jantar foi em direção à cozinha que ficava separada do resto da casa. Sozinho ele encontrou a panela de feijão. Comeu. Muito.
No dia seguinte, na hora do almoço, o menino pediu categoricamente o feijão de ontem. A irmã respondeu dizendo que o feijão de ontem havia acabado no almoço de ontem e ainda pôs a culpa na fome ilimitada dele. “E o feijão que eu comi ontem? Ela está querendo esconder de mim!” Uma atitude justificável devido à quantidade de filhos, mas na cabeça daquela criança era um insulto. Sem dar tempo para o menino expor sua revolta a irmã completou dizendo que o feijão que tinha em casa era velho e que comer aquilo pode até matar. Pode até matar.
A fome acabou e o dia escureceu. O menino que sempre levava um sorriso bonito no rosto demonstrava um semblante de preocupação. Queria poder ver a mãe mais uma vez. Ele se fiava na possibilidade da morte, não na certeza. Entretanto, ele já tinha um conhecimento prévio de assuntos fúnebres e sabia que quando era a hora, era a hora. Seria possível uma criança morrer por causa de feijão? Como ficaria sua certidão de óbito? “Morto por feijoada”. Com uma certidão dessas saberia que mesmo morto sentiria vergonha, não queria dar esse desgosto aos pais.
Ao anoitecer ele já havia aceitado mais a morte, a vida não é bela para todos. Passou por todas as fases do enfretamento, rebelou-se e quebrou o balanço das crianças catarrentas, chorou quantas lágrimas fossem necessárias para afogar o medo da morte. Tentou o apoio da irmã, mas quando criou coragem para falar com a irmã ela estava cantando, tinha uma voz bonita, mas não escolhera bem a letra. “Deixa a luz do céu entrar... Abre bem as portas do teu coração e deixa a luz do céu entrar...” Fora o sinal que faltava.
Meio devoto que era, rezou naquela noite. Repetiu a meia dúzia de orações que sabia de cor, inclusive as antífonas da missa, tudo vale a pena para salvar uma alma, pensou. Deitou-se. Arranjou uma boa posição para esperar a morte, cruzou as mãos no peito entrelaçando um rosário nos polegares. Quem via aquilo ria, mas ele, mesmo de olhos fechados, soltava lágrimas pelas pálpebras apertadas. Naquela noite o cheiro ruim da roupa de cama não o incomodava mais, achava que estava perdendo os sentidos.

- Será que dói morrer? Morte?...

Ninguém respondia, a morte é solitária e a vida injusta. Uma criança, tão jovem, tão pequena e delicada esperando a morte? Por um feijão? Morrer de feijoada não seria seu destino. Passou a noite em claro mais uma vez, mas desta vez de vigília. Queria encarar a morte e pedir mais um tempo de vida, deixaria de ser guloso...
A sobrinha loira e a boneca enlameada o acordaram cada uma com sua frase:

- Me dá um abraço?

- Ele está vivo!

Vivo! Com vida, sem morte, sem feijoada e com fome. Beijou tanto a sobrinha e até mesmo a boneca que precisou lavar o rosto para tirar a lama. Não havia morrido. De tanto medo conseguira dormir só quando o sol já mostrava seus raios e, por isso, não acordara antes do meio dia, a irmã, preocupada, pediu para que a filha ficasse olhando o tio até ele acordar. Como aquela casa ficara linda de um dia para o outro, como o mundo ganhara cores! A vida passou a ter mais graça depois daquele episódio. Talvez o feijão não estivesse ainda envenenado o suficiente para matar, ou quem sabe não matasse. Na cabeça dele nenhuma justificação era mais necessária: estava vivo.
As férias passaram de uma forma muito rápida e ele aproveitou ao máximo por renascer das cinzas do fogão à lenha. Já em casa, segredou à mãe do fato acontecido. Ela riu com seu sorriso de mãe que só ela sabia ter e o abraçou dizendo: quem bom que você voltou vivo! E foi naquele abraço que ele viu que não havia chiclete mastigado, feijão estragado ou qualquer outra comida gostosa tão boa quanto viver ao lado de quem se ama.

2 comentários:

Flora Maíra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flora Maíra disse...

Que lindo!