sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Dipterícia

Vi que a tempestade estava chegando, de verdade, eu consegui sentir o cheiro dos trovões. Sabe? Aquele cheiro ocre que sobe quando o vento é vazio e, ao mesmo tempo, cheio de uma premonição: é dia de céu desaguar. Mas era noite. O azul profundo tomava conta do céu, da mesma forma que o mar tamborilava o medo de transbordar com tanta água no seu inverso multicolorido. Caí na besteira de abrir a janela, mas só um pouquinho pra transitar entre a vontade de querer ver mais e o receio do que pode entrar pela fresta recém nascida. Parto prematuro esse. Do pequeno fio de nada que se fez entre o vidro sujo pela maresia e a rua úmida entrou uma mosca enorme. Uma mosca. Daquelas de um verde profundo e cintilante. Ela brilhava pra mim, só pra mim com aquele olhar que não se entende de tão geometricamente perfeito: são octógonos dispostos lado a lado num mesmo globo ocular protuso? São prismas? Já me disseram que são vários olhinhos pequeninhos unidos. Sei lá.
Pra mim, tem gente que é mosca. Porque mosca não é um adjetivo, mosca é mosca. É mosca por entrar e ver com olhos profundos nos olhos da gente. É mosca por rondar sem receber a permissão. É mosca por viver apenas em trinta dias o que eu não vivi em uma vida inteira. É mosca por se transformar de larva em um ser que voa por aí livremente. É mosca, apenas. Mas esta que entrou no meu quarto e que, ironicamente, tentou penetrar nos meus vitreamente protegidos olhos não me disse nada além do bzzz habitual. Quis saber a língua das moscas.
Confesso que pensei em pegar aquele produto que mata. Há tanta informação por aí: mosca anda no cocô, caminha pela sua pele, infecciona, apodrece. Mas que apodreça. Aos poucos a gente vai virando pó mesmo. De mansinho a gente vai virando alguma coisa semelhante à mosca; ando, por exemplo, digerindo coisas feito mosca: mastigando, engolindo, vomitando, mastigando, engolindo e vomitando uma porção de coisas para as quais não tenho enzimas ainda. O mesmo quimo de sempre. Pra não ser Kafkaniano demais, dispenso o exoesqueleto. Quero apenas mudar, voar.
Quando me dei conta, a mosca já não estava mais entre o ali e o aqui. Danada, também me causou inveja nisso. A tempestade chegou, a mosca sumiu e eu aqui ainda mastigando.

Um comentário:

Geni disse...

Meldeus! Que incrível, Taviño! Uau. Como vc consegue fazer isso? hehe. Isso o quê? Isso de tornar visível coisas que são meio despercebidas e que costumam passar desapercebidas. Mas a mosca, tanto quanto nós, faz parte, é vida. Amei, lindo, lindo.