quinta-feira, 6 de junho de 2013

Vácuo

Um dia o mar resolveu dar ré. De súbito, numa manhã avermelhada de outono, o mar foi voltando-se ao centro-mundo num retroativo oceânico, como um retorno à maternidade desconhecida, talvez, por solidão. Porque de praia em praia, na continentalidade, os olhos voltavam-se apenas para o silício transeunte que, ao mesmo tempo em que ligava, separava os seres cansados de si. Abismados com o abismo horizontal criado nas costas e encostas, o povo foi adentrando no ex-mar que seu formava. Descuidados, construíram casas, pensando: mais espaço. Todos que coragem tinham construíram um casebre às  pressas para garantir um lugar no chão-mar. Os produtores bovinos alegravam-se ao saber que os peixes não mais serviriam de alimento e, veja só, davam espaço para a produção de carne. As terras marais (como ficaram conhecidas) passaram a ser terra-de-ninguém quando extrapolaram a continentalidade. Sem regras, a carnificina se fez e quanto mais ela se mostrava, mais o mar recuava para um buraco, agora visível, no umbigo do mundo entre o Pacífico e o Índico. Os noticiários já noticiavam, até porque é isso que fazem. Sem a crítica, sem um quê de criatividade, o que se via na tevê era o caminhar do mar na direção de um buraco temível e temido que oscilava entre o negro e o carmim. Os montes de carcaças dos seres aquáticos ficavam invisíveis com a possibilidade de mais espaço para a ganância. Estradas. Carcaça. Abutres. Odor. Mudou-se o ciclo de água, o clima, mas o homem é bicho camaleônico. O mundo passou a inventar-se por cima da não existência de oceanos. Agora só um, o chamado Remanescente, diminuía a cada dia, como um pulsar convalescente, um grito de socorro. Nos derradeiros dias, o buraco negro-carmim deu lugar a um coração. Aquela víscera pulsátil exposta pouco chamava a atenção dos homens que afoitos construíam  o lugar de dono por cima das fossas, agora, não oceânicas. Numa última diástole, o coração jorrou em sangue o que lhe havia sido entregue em mar. Em casa, um homem solitário, na antiga América agora desvalorizada, cortava lenha para se preparar para o inverno. Ouviu com sua audição limitada o uníssono de um grito de desespero, como um pedido de perdão.

Um comentário:

Geni disse...

Teu poema tem a voz de muitas águas, Tavinho...Quanta força no dito sobre o que seria indizível se dito doutra maneira. Demais, querido.